25 de fevereiro de 2022

O Modernismo Aprendiz de Mário de Andrade

“Catolé do Rocha, capital do cangaço paraibano, é meia espandongada no jeito, com duas praças grandes, contíguas e em plano diferente. Um conventinho muito bonito em barroco simples. Lá num morro a capelinha é uma gostosura de estrela que o Sol faz."

(Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, página 293)

 

Neste ano de 2022 fazem 100 anos da Semana de Arte Moderna; e pelo menos 77 anos da morte de Mário de Andrade. Seu legado, todavia, permanece vivo; tanto nas obras como nas ideias que semeou. Para muitos de nós, Mário de Andrade é o autor de Macunaíma. Estudamos nos colégios que sua contribuição esteve atrelada ao movimento modernista, cuja semana de arte moderna de 1922 teria abalado os pilares da sociedade brasileira sobre a arte e a cultura do seu tempo. Porém, até pouco tempo atrás não se discutia com tanta ênfase sobre o que vem a ser o reflexo do modernismo na sociedade, para além da poesia e da arte moderna discutida naqueles intensos dias, e quais seriam os reflexos deste na trajetória de um dos mais atuantes e expressivos intelectuais brasileiros.

Para além dos dados biográficos de Mário de Andrade, que estão disponíveis nos livros, na internet e nas mais diversas enciclopédias sobre o Brasil, nesta conversa nos debruçaremos sobre alguns detalhes de sua biografia e do seu legado. Por estas vias, como em uma viagem, podemos compreender um pouco de como surgiu, em Mário de Andrade, o interesse por conhecer o Brasil em sua multiplicidade de culturas, ritmos, arte e manifestações populares. Isto desde os anos de aprendizado na música ao seu rico interesse por descobrir um Brasil distante dos brasileiros de São Paulo; distante, também, dos poetas parnasianos, que tinham a Europa como o seu norte de exemplo; distante, talvez, daquilo que nunca chegou a ele a não ser por cartas e relatos de viajantes.

Assim, podemos refletir sobre a cronologia de Mário de Andrade e escrutinar suas ideias de acordo com o seu tempo. Ele esteve no centro de diversos debates iniciados naquela época: o processo de compreender o que caracterizava o Brasil como uma nação, o que era a cultura brasileira, quais os limites e afirmações da língua portuguesa à brasileira, o que unia o Brasil do imaginário de um Brasil real. Mais do que um visionário, Mário de Andrade foi um sujeito do seu tempo, e soube absorver intelectualmente todas as inquietações dos intelectuais daquela época. Para quem o conheceu (e aqui indico como referência o livro De Olho em Mário de Andrade, da autoria de André Botelho) fica a personalidade de uma pessoa brincalhona, honesta e intensamente compenetrada naquilo que fez. A quem não o conheceu, ficam os traços de uma trajetória inspiradora e inquietante.

Nosso passo seguinte passeia por aquilo pelo qual Mário de Andrade se tornou conhecido: o modernismo de 1922. Ao refletir sobre isso, vemos que as preocupações do autor são as mesmas que as de outras personalidades que o acompanharam no movimento modernista, com o diferencial de que Mário de Andrade buscou imprimir à sua trajetória de vida uma “filosofia modernista”. De uma leitura sociológica, o modernismo não afetou apenas o terreno das artes e da cultura, mas refletiu toda a preocupação de intelectuais, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, de entender o Brasil feito por brasileiros, dentro de suas influências externas, da colonização e do que lhe tornaria um país “único” dentre os demais. O modernismo, por sua vez, foi pelo menos a tentativa de um intenso movimento de redescoberta do Brasil feito por brasileiros, no momento ao qual competia uma resposta sobre o que é a brasilidade, isto é, o que nos une e nos define enquanto brasileiros.

E aqui quero lembrar um dos projetos mais audaciosos iniciados no meio intelectual daquela época: O Turista Aprendiz. Realizado a partir de viagens que o Mário de Andrade realizou a partir dos anos de 1920, este livro tinha como objetivo um projeto maior chamado Na Pancada do Ganzá. O objetivo: ler, registrar e documentar danças, músicas, poesias e manifestações culturais do Norte e Nordeste do país. É claro, isso é parte do projeto de Mário de Andrade em compreender a cultura brasileira dentro de uma dimensão real, afastando a compreensão do pitoresco e do extraordinário pintado por uma compreensão estrangeira do Brasil. Nesta época, Mário leva a São Paulo, a partir de publicações em jornais, traços do que seria um Brasil distante do sudeste, com uma compreensão da cultura nacional que era não mais a de quem a vê de fora, mas a de quem pertence a ela para abrir-se a uma visão que vem de dentro dela. Como o expressa o seguinte poema, retirado do livro Clan do Jabuti:

 

DESCOBRIMENTO

 Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

 Esse homem é brasileiro que nem eu.

Mário é, assim, visitado pelo Nordeste em seu “coração paulistano” (como o diria o poema Quando eu morrer, no livro Lira Paulistana, de 1945). Mas não só. Ele também é visitado pelo Nordeste no livro O Turista Aprendiz. Uma obra que pode ser encontrada na internet (portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/O_turista_aprendiz.pdf) e em ricos acervos bibliográficos. Nele, Mário de Andrade reuniu crônicas de suas viagens pelo Norte e Nordeste do país, descrevendo o dia de chegada no lugar, a data e o tempo em horas que permaneceu. Mais especificamente no Nordeste, Mário passou por cidades do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Entre as cidades paraibanas visitadas, estão, entre elas, Cabedelo, Guarabira, Catolé do Rocha, João Pessoa. Dos intelectuais nordestinos com quem Mário de Andrade teve contato estão o folclorista potiguar Câmara Cascudo, o poeta Ascenso Ferreira, os escritores paraibanos José Américo de Almeida e Ademar Vidal, o cantador de coco Chico Antônio, entre outros. Para exemplificar, temos um trecho deste grande diário no qual relata sua primeira chegada à Paraíba:

 

Me esqueci de contar que já estamos na Paraíba. O xique-xique freqüenta abundantemente a janelinha do vagão e aumenta a impressão de seca, arrogante, brigando com ela. E os marmeleiros. Morros e morros eriçados de arvinhas desfolhadas, desgalhadas, só ramos, ramos fininhos espetados, duma cor branca cinzada, quase branca... Caatinga!... Um dos maiores prazeres da fadiga rodoviária é mesmo esse estado associativo em que a gente fica.

(Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, página 227)

         Eis que, em outro momento, Mário assim registra:

Por enquanto foi isso que eu vi da cidade da Paraíba e que pode aumentar o leitor. O resto não se conta, são carinhos de amizade, gente suavíssima que me quer bem, que se interessa pelos meus trabalhos, que me proporciona ocasiões, de mais dizer que o Brasil é uma gostosura de se viver. Vai mal? Acho que vai. Acho que vai e sofro. Porém sofrimento jamais perturbou felicidade, penso muito nos meus sofrimentos de brasileiro e eles fazem parte da minha felicidade do mundo.

 (Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, p.316)

       

            Por fim, e deixando aberta a leitura sobre os passos deste turista aprendiz, cabe dizer que o contato com o Norte e Nordeste fez nascer em Mário de Andrade uma visão panorâmica, política e cultural sobre um Brasil real. Ao exercer o cargo de chefe do Departamento de Cultura de São Paulo, o autor o fez nutrindo toda a esperança de reatar os laços da “Paulicéia Desvairada” com a tradição e cultura dos imigrantes nordestinos. Nas muitas crônicas de O Turista Aprendiz, Mário observou o modo injusto e explorador como eram tratados os trabalhadores nordestinos e a situação de miséria de muitos. Era, portanto, uma missão registrar e preservar a cultura deste povo e estender à política de Estado uma visão mais justa de sua situação na São Paulo que se industrializava.

Decepcionado com o Estado Novo e sua demissão do Departamento de Cultura, Mário de Andrade se viu tolhido dos sonhos que nutriu. Como era de costume à época, os intelectuais que ocupavam cargos públicos eram lentamente substituídos por técnicos e políticos de carreira. Não faz mal. A todos aqueles que se virem diante das crônicas e relatos de viagem constantes d’O Turista Aprendiz perceberão que o projeto político de Mário de Andrade se realizava, antes de tudo, no sentimento. Ele próprio um fazedor de versos, mas também de verbos (Amar, verbo intransitivo), visitou o Norte e Nordeste e deixou-se por eles ser visitado, embalando-se no som da língua e vivendo as cores de um país real que vive, nas ruas e calçadas, o seu próprio modernismo aprendiz.

Sobre o autor

João Matias é escritor, sociólogo e professor. Docente na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou O Lugar dos Dissidentes (2019) pela Editora Escaleras, dentre outros. É um dos editores da Revista Blecaute de Literatura e organizador do Encontro de Literatura Contemporânea, em Campina Grande - PB.