Quero ser Yoko Tawada
Yoko Tawada tem se tornado uma daquelas escritoras que desejo sempre ler mais e mais. Desde o meu primeiro contato com The bridgeroom was a dog (ainda sem tradução), passando pelo ótimo Memórias de um urso-polar (Todavia, 2019), e agora com esse Überseezungen é possível perceber a sua inquietação e sua busca pelo melhor jeito de narrar, de dizer, de se colocar.
Os contos/ensaios de Überseezugen se voltam para as línguas e o modo como nosso identidade, afetividades e modos de ser e estar no mundo dependem da palavra. Aqui não se trata da força criadora do Logos do deus judaico-cristão, mas da força ciativa capaz de transpor obstáculos, conectar pessoas e redefinir trajetórias. Trata-se da palavra em ação, em movimento, flamulando como uma bandeira ao vento, como uma onda que pressente a arrebentação, como um ser em contínua redefinição.
Sobre o título
Como destaca o posfácio escrito pelos tradutores e pesquisadores, Marianna Ilgenfritz Daudt e Gerson Roberto Neumann, o "título de Tawada é um entrelaçamento de formas e significados".
Em alemão, Übersetzungen significa traduções; See, quer dizer mar; Zungen significa línguas; Übersee pode ser traduzido com além-mar; Seezunge, por sua vez, pode ser traduzido como linguado, "peixe cujo o aspecto morfológico oval lembra o formato de uma língua. O linguado caracteriza-se, ainda, por sofrer uma metamorfose ao longo de seu ciclo de vida: seus olhos migram e seu rosto se transforma, literalmente, no momento em que passa a viver a maior parte do tempo no fundo de seu ambiente aquático".
Assim, Tawada brinca com os sentidos, com as formas que a língua pode assumir, desde a linguagem à fala, com seus sons que remetem a cheiros, cores e sabores, indo da superfície às profundezas, num deslocamento contínuo, de norte a sul e leste a oeste. Esse deslocamento toma diferentes formas nos textos que povoam essa coletânea.
Sobre os ensaios
São catorze ensaios/contos divididos entre Línguas Euroasiáticas, Líguas Sul-africanas e Líguas norte-americanas. Neles as reflexões sobre as línguas como mecanismos de transposição, deslocamento, identificação e transformação despontam entre narrativas inusitadas, marcadas pelo estranhamento e olhar cuidadoso e delicado atento a pequenos detalhes.
"Quando acordo, minha língua está sempre um pouco inchada e grande demais para podr se mexer dentro da boca. Ela congestiona minhas vias aéreas e sinto uma pressão sobre os pulmões. Quanto tempo ainda esse sufocar? Pergunto-me, e logo ela já diminui."
Eis o início de Dança da lígua, texto que abre o volume e antecipa a plurivodicidade com que se tratará a língua e remete ao fato de que ela é maior que nós.
"Certa vez, em um sonho, eu estava em uma estrada completamente sem tráfego. Meu corpo era todo uma língua. Ao longe, vi que havia um homem de uniforme, estava de bruços no chão. Falei para mim mesma: não posso ter vistonada, uma língua não tem olhos. Então, do nada, surgiram dois policiais e falaram comigo. Eu seria a única pessoa que teria visto o brutal assassinato. Quem quer que tivesse atirado naquelas costas uniformizadas haveria de ser severamente punido. Na verdade, o homem que jazia era um soldado de chumbo. Um cigarro em brasa saía do bolso de sua calça metálica."
Tawada brinca com a forma que a língua pode tomar e com as sensações que causa. A consciência da língua relacionada apenas ao momento do incômodo, quando sufoca em busca da palavra certa a ser dita ou da necessidade de vencer o medo, a timidez ou o silêncio para comunicar-se.
Atenta ao modo como a língua nos possibilita enxergar, mesmo sem olhos. Ver é narrar. Não são os olhos, mas a língua quem descreve o mundo que nos cerca.
"Eu era uma língua. Saí de casa assim, nua, rosa e insuportavelmente úmida. Era fácil causar admiração nas pessoas na rua, no entanto, ninguém queria me tocar. Mulheres de plástico sem órgãos genitais estavam expostas na vitrine. Os preços das etiquetas haviam sido riscados com lápis vermelho. Cidadãos prudentes tocam apenas em línguas bem embaladas em folhas plásticas."
Há espanto e sistema na língua, uma solidariedade sincrônica que faz do todo parte e das partes todo. Se se embaralha diferentes peças se dissolve a certeza dos sentidos, todos interdependentes.
Tawada vai fio-a-fio tecendo tramas delicadas, detalhadas, subvertendo técnicas, confundindo atores, personagens e narradores, borrando os sentidos em mecanismos e tentativas de transposições: do som à escrita; de um idioma a outro; um sentido a outro; de significados e pesos diversos a expressões, verbos, adjetivos, substantivos e advérbios a novos contextos e usos.
"Quando não se conhece uma palavra adequada, é preciso inventá-la, já dizia o poeta."
E há de se ter palavra para tudo. A invenção é o que nos torna aptos à adaptação. É a língua quem define o que somos, se paz ou guerra, se luz ou trevas, se asiático ou europeu, se de um ou de nenhum lugar, se menino ou menina:
"Era difícil para mim lidar com todas essas palavras que significam 'eu'. Eu não me sentia nem menino nem menina. Depois de adulta, uma pessoa pode se refugiar na palavra de gênero neutro 'watashi', mas até lá as pessoas são obrigadas a serem moças ou rapazes."
Para fim de conversa
Ao longo de catorze contos/ensaios Tawada nos brinda com a riqueza da língua multiforme, indefinida e tão definidora, mutável e ainda assim a única coisa estável, capaz de nos fazer sentir coisas apenas por ter uma palavra para isso, ou de nos mergulhar em sensações, cores e sabores a partir da sonoridade, do tom, da potência com que algo é dito.
A língua pode ser chão e mar, peixe e pássaro, tradução, transposição, adaptação, evolução, revolução, rebelião, sensações, sentimentos, transformação. Se Twada acordou de sonhos intranquilos matamorfoseada em língua, quem garante que ao lermos Überseezungen não somos nós metamorfoseados de Yoko Tawada.