8 de fevereiro de 2022

Alina

Conheci Alina na terceira semana de aulas. Ela era a única pessoa na turma, além de mim, que não parecia uma criança, mas também não estava ainda na meia-idade. Eu tinha 30 anos; ela, descobri naquele dia, tinha 26. Alina não foi às aulas nas duas primeiras semanas. Na segunda-feira da terceira semana, apresentei-me a ela no intervalo. E só a vi mesmo no intervalo, às nove da noite, quando saí do prédio para fumar. Sozinho. A geração sucessora da minha não fuma. A minha não fuma muito também. Mas Alina tinha saído antes e estava fumando do lado de fora do prédio. Estava apoiada no corrimão da escada curta que descia até a calçada, uns dez metros à frente do prédio da faculdade. Incialmente, fiquei uns dez metros atrás dela, encostado na parede ao lado da entrada do edifício. 

Dali, sem demora, reparei na mulher fumando perto da escada enquanto observava os carros passando na rua e, talvez, os pinheiros no escuro, do outro lado – seus contornos contra o céu avermelhado, como ficam os céus nublados nas noites da cidade. Não havia muito o que se observar dali. Mas ela terminou o cigarro e permaneceu no mesmo lugar. Quando terminei o meu, dei-lhe um peteleco para o lado, para algum canto escuro. Não porque a tinha notado – e eu ainda não sabia que ela era minha colega –, só fiquei ali por mais um tempo. E pretendia permanecer por mais algum quando ela se afastou lateralmente do corrimão e alongou os braços sobre a cabeça. Depois ela se voltou na direção da entrada do prédio parecendo não muito entusiasmada – mas logo começou a andar. Alina parecia ainda mais velha que seus 26 anos. Usava o cabelo curto, o cabelo escuro. Tinha no rosto óculos redondos de moldura preta tentando esconder suas sobrancelhas grossas erguidas nas extremidades – e seus olhos puxados para dentro, na direção de um nariz que parecia um pouco felino. Os cantos dos olhos chegavam mesmo a se esticar para baixo, na direção da ponta do nariz. Sua boca não era grande nem pequena; seus lábios, talvez um pouco cheios, mas não muito. E ela não era muito mais baixa que eu, sua altura era próxima da minha. Alina vestia uma calça jeans preta, na altura do umbigo, e uma camiseta laranja queimado enfiada para dentro da calça, por baixo de uma camisa de flanela xadrez, azul e branca. Quando ia passar por mim, perguntei-lhe num impulso:

– Ei, você tem um cigarro?

Ela carregava o maço na mão. Olhou para ele por uma fração de segundo. Acho que entendeu logo que não teria como me negar um cigarro. Não que ela necessariamente fosse. Eu mesmo raramente nego cigarros. Ela sorriu muito discretamente, dizendo um “sim” para dentro, enquanto tirava o isqueiro e um cigarro de dentro do maço.

– Desculpa pedir, eu sei que é chato – falei, pegando o cigarro. – Preciso ir comprar.

– É – ela respondeu. – Mas tudo bem, eu tô tentando parar.

E me ofereceu o isqueiro. Peguei e acendi o cigarro. Devolvi. Ela guardou-o novamente dentro do maço, mas, ao invés de tornar a andar, sem deixar passar muito tempo, me perguntou:

– Você faz direito?

– Sim – respondi. – Tô começando. Primeiro período.

– Sério? Eu também. Primeiro período. Noturno... Claro.

Então eu lhe contei que cursara artes por um ano, que me formei em filosofia e no ano passado terminara meu mestrado na área. Ela era arquiteta, contou-me – e que havia cursado psicologia por três anos.

– Eu achei que tinha me encontrado na arquitetura – disse. E para minha surpresa seguiu: – Mas vi que só tinha era me entregado.

Curiosa a sua forma de colocar as coisas.

– Eu achei que só me encontraria na filosofia – rebati. – Mas me iludi: na filosofia só se perde.

Ela me encarou séria, nenhum sinal de sorriso.

– As luzes queimam também – falou. – O sol queima a gente lá de longe.

– Nada é perfeito – respondi.

Ela revirou os olhos para mim pela primeira vez.

– Vão começar as platitudes? – perguntou.

– Não – respondi, um pouco perturbado –, realmente, sem o sol não existiria vida na Terra. Mas é, ele queima... Ele mata até.

– As coisas não são só boas ou ruins, não foi isso que eu disse – ela afirmou, para um orgulhoso mestre em filosofia. – Nem boas e ruins. Nem nada.

– Eu não discordo – falei.

– Eu não gosto de frases de efeito. Só seja honesto comigo.

Ela, então, encostou-se à parede, ao meu lado. Quando me apartei por um momento da situação, do que estava acontecendo, me senti estranho. Não bem ou mal, nem uma mistura dos dois: só estranho. Não consegui pensar no que poderia dizer.

– O que te prende? – Alina perguntou.

Que pergunta é essa?, pensei.

– O que te segura? – ela seguiu, e mudando ligeiramente para um tom de alguma curiosidade: – Quantos anos você tem?

– Vinte e nove – menti.

Ela não falou nada.

– Eu não sei – falei eu, de novo, tentando responder à sua primeira questão. – Como assim? Quantos anos você tem?

– Vinte e seis. O que não te deixa seguir na vida?

– Eu tô seguindo – disse –, tô tentando.

– E por que não consegue? – ela persistiu.

De repente, eu fiquei bastante confuso.

– Mas como assim? Quem disse que eu não consigo? Eu acho que eu tô seguindo.

– Pra que tipo de cabresto você acha que tá seguindo? – ela insistiu.

Não respondi imediatamente. Questionei-me por um instante se Alina não estaria, talvez, apenas me provocando. Mas ela ainda não esboçava sorriso.

– Eu não sei – terminei respondendo. – Qual é o seu nome? – lembrei-me de perguntar.

– Alina. E o seu?

Respondi e estendi minha mão, ela aceitou o cumprimento. Isso me deu tempo para respirar. Então, perguntei eu: 

– E você, o que te segura, o que te prende?

– Eu sou preguiçosa – respondeu a jovem arquiteta, quase psicóloga, começando uma faculdade de direito. – Não, não sei se sou preguiçosa – corrigiu-se –, sou um pouco neurótica. E inquieta. E me acomodo, às vezes.

– Você é uma contradição ambulante – falei. – Você consegue se ouvir?

– É claro que eu consigo – Alina respondeu, levemente ofendida. – Mas é aí que tá: eu não tenho nenhum cabresto como perspectiva. Você tem.

– Eu tenho? – respondi, soando ofendido, mas sem saber com certeza se estava ou não. Havia, sem dúvidas, na minha pergunta um desejo sincero de ouvir a resposta que ela me daria. Naturalmente, pois, ela não me deu nenhuma.

– Qual é a sua paixão? – perguntou, em vez de responder.

Eu sacudi a cabeça, agora legitimamente desnorteado. Mas respondi depressa o que eu respondia sempre:

– A justiça.

– Você pode ser menos abstrato, por favor? – Alina pediu.

– Justiça não é uma abstração – respondi.

Ela revirou os olhos de novo, mas sem dar muita ênfase ao ato. Segui:

– Injustiças são muito objetivas. Justiça não é nenhum conceito vago.

Alina tirou seu isqueiro e um cigarro do seu maço, que estava agora preso na cintura da calça, onde ela o havia colocado sem que eu reparasse. Tirei também meu maço do bolso da minha camisa, sem me lembrar do cigarro que eu pedira a ela alguns minutos antes. Ela me olhou esboçando pela segunda vez um sorriso.

– Você diria que honestidade e justiça têm a ver uma a outra? – Alina perguntou.

Com certeza eu corei:

– Eu não chamaria isso de desonestidade – falei.

– Honestidade não é um conceito vago – ela respondeu.

Concordei com a cabeça. E perguntei:

– Onde você aprendeu retórica?

Mas Alina pulou rapidamente de sua posição, encostada ao meu lado na parede externa da fachada do prédio da faculdade de direito.

– Você precisa se convencer das suas paixões – falou. Correu até a escada, saltou os 5 ou 6 de seus degraus e gritou lá da calçada, enquanto sinalizava para o ônibus que se aproximava: – Me conta, confessa pra mim!

Confessar o quê? Não consegui responder em voz alta nem reagir de forma alguma. O ônibus parou e ela correu para pegá-lo, escondendo-se atrás da cobertura do ponto. Eu pulei da minha posição, encostado na parede vazia, tentando enxergá-la. O ônibus não se moveu. Caminhei até a escada com algum medo e alguma esperança, ainda sem conseguir ver a porta do ônibus. Quando vi, ela desceu correndo e olhou, com os olhos arregalados, para mim – ainda detido no topo da escada.

– Confessa! – gritou outra vez. Bateu uma vez as palmas de suas mãos e correu para dentro de novo.

 

*

 

por Daniel Medeiros Valle - Nascido em Juiz de Fora, MG, Daniel Medeiros Valle é autor do romance Mosca Volante (Penalux, 2013). Com passagens por diversos blogs ao longo dos anos, escreveu sobre cinema, futebol, filosofia, literatura entre outras coisas. É mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora, onde se dedicou aos estudos de gênero e sexualidade.