O disco revolucionário de Nara Leão
A história e as histórias do revolucionário disco de estreia de Nara Leão, lançado em 1964,
são narradas em livro do jornalista e pesquisador Hugo Sukman
Nos agitados meses que antecederam o Golpe Militar de 1964, acontecia no Rio de Janeiro uma revolução – aí, sim, verdadeira – musical. Guiada pela intuição e pelo faro de uma Nara Leão estreante e aparentando ainda menos idade do que os 22 anos que de fato tinha, a tal revolução se concretizou em um disco em que tudo era novo – e com cada uma das faixas apontando para algo que viria a se consolidar na música brasileira nos anos seguintes.
Em Nara, a “musa” rompia com a bossa nova para dar voz ao samba e à canção de protesto, valorizando compositores como Zé Keti, Nelson Cavaquinho e Cartola. Essa revolução feita com modos suaves, lirismo e belas melodias é narrada em Nara Leão: Nara – 1964, da coleção O Livro do Disco (Editora Cobogó), pelo jornalista e pesquisador Hugo Sukman.
Mobilizada pela profundidade social do samba do morro, Nara realizou um trabalho, acima de tudo, político. “Esse primeiro disco, para mim, foi falar de uma coisa que eu achava muito importante, falar dos problemas brasileiros. Eu tinha muito a ideia de reportagem musical, mostrar ao pessoal de Copacabana o que o morro faz, uma coisa de reportagem mesmo”, contou Nara.
É possível contar boa parte da história da música brasileira a partir do LP, peça-chave para o entendimento daqueles tempos. “Cada uma de suas músicas narra um pouco da história daquela época, cada canção tem uma história. E todas elas se juntam para formar um painel da música brasileira no período”, explica o autor.
Na faixa “O sol nascerá”, de título tão simbólico, Nara, além de reapresentar Cartola, lançava Elton Medeiros; Zé Keti ressurgia como compositor, ao lado de Hortêncio Rocha, em “Diz que vou por aí”; “Luz negra”, de Nelson Cavaquinho, ganhava sua primeira versão com letra (de Amâncio Cardoso); e Edu Lobo, antes de ser consagrado pelas interpretações de Elis Regina, aparecia em duas parcerias com Ruy Guerra (“Canção da terra” e “Réquiem para um amor”). Além disso, Vinicius de Moares vinha com três canções: dois marcantes afro-sambas em parceria com Baden Powell (“Berimbau” e “Consolação) e “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, com Carlos Lyra.
Essa última, escolhida para abrir o disco, reforça o tom político de Nara. “Acabou nosso carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais brincando feliz/ E nos corações/ Saudades e cinzas foi o que restou”, canta Nara, descrevendo, poética e metaforicamente, o que poderia ser um golpe militar – algo que realmente aconteceria um mês depois do lançamento do disco.
Nas palavras de Caetano Veloso, Nara Leão foi uma das responsáveis por iniciar “o movimento de politização da moderna canção brasileira pós-bossa nova: era, por um lado a força dos temas sociais que se impunha, por outro, a força da música popular brasileira, essa onda imensa que já vem de lá de trás e que não pode deixar de arrastar tudo...”
Enquanto guia o leitor por uma saborosa história não só da música brasileira como também do Brasil e de sua cultura, Hugo Sukman ilumina a trajetória da artista visionária que foi Nara Leão. Repleto de histórias paralelas e personagens inesquecíveis, a narrativa de Nara Leão: Nara – 1964 evidencia a maneira pela qual o LP foi capaz de capturar o zeitgeist, o espírito daquela época, para produzir uma obra definitiva e atemporal.
Sobre a artista
Nara Leão nasceu em Vitória, no Espírito Santo, em 1942, e mudou-se para o Rio ainda criança. O apartamento de seus pais, na Avenida Atlântica, logo se tornaria o epicentro da Bossa Nova, com reuniões que iam noite adentro e nas quais recebia em meio aos amigos, João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, para cantar e tocar violão. Inquieta, antes de gravar seu primeiro disco, Nara, em janeiro de 1964, rompe com a Bossa Nova concebendo um álbum que se volta para questões do Brasil, trazendo sambas e canções de cunho social. Seu segundo disco, Opinião de Nara (1964), com canções de protesto, dá origem ao famoso show Opinião (1964), em que estaria em cena ao lado de Zé Kéti e João do Vale. Nara é a primeira a gravar compositores como Sidney Miller, Edu Lobo, Jards Macalé e Chico Buarque, ao lado de quem, em 1966, ganha o Festival da Record com a canção “A banda”, imenso sucesso nacional. Em 1968 participa do disco coletivo Tropicália (1968), gravando a canção “Lindonéia”, encomendada por ela a Caetano Veloso, a partir de uma obra de Rubens Gerchman. No ano seguinte, com o acirramento do regime militar, parte para o exílio em Paris. Na volta ao Brasil, em 1971, passa a dividir seu tempo entre a maternidade, o estudo de Psicologia na PUC-Rio e a gravação de álbuns marcantes como Meus amigos são um barato (1977), Com açúcar com afeto (1980) e Nasci para bailar (1982). Morre em 1989, deixando 24 discos e um legado inestimável para a música e a cultura brasileiras.
Sobre o autor
Hugo Sukman é jornalista, escritor, crítico de música carioca e curador da nova sede do MIS RJ, Museu da Imagem e do Som, em construção na Av. Atlântica, em Copacabana. Com experiência de 30 anos em redações brasileiras, trabalhou como repórter, crítico de cinema e música e editor de Cultura no Jornal do Brasil, e depois em O Globo, para o qual foi correspondente em Paris, entre 2000 e 2003. Escreveu, em parceria com o ator e dramaturgo Marcos França, a peça biográfica sobre Nara Leão, A menina disse coisas (2018). É autor dos livros Martinho da Vila – Discobiografia, Histórias paralelas – 50 anos de música brasileira e Heranças do samba – este em parceria com Aldir Blanc e Luiz Fernando Vianna (todos pela Casa da Palavra), Cancioneiro Moacir Santos (Jobim Music), A música de Djavan (Luanda Music), entre outros.
Sobre a coleção
A coleção O Livro do Disco foi lançada em 2014, pela Cobogó, para apresentar aos leitores reflexões musicais distintas sobre álbuns que foram, e são, essenciais na nossa formação cultural e, claro, afetiva. A cada título lançado, o leitor é convidado a mergulhar na história de discos que quebraram barreiras, abriram caminhos e definiram paradigmas. O Livro do Disco é para os fãs de música, mas é também para quem deseja um contato mais aprofundado, porém acessível, com o contexto e os personagens centrais de trabalhos que marcaram a história da música. Em tempos de audição fragmentada e acesso à música via plataformas de streaming, (re)encontrar esses discos em sua totalidade é uma forma de escutar o muito que eles têm a dizer sobre o nosso tempo.
Ficha técnica
Título: Nara Leão: Nara – 1964
Artista: Nara Leão
Autor: Hugo Sukman
Capa: Radiográfico
Coleção: O Livro do Disco
Páginas: 224
ISBN: 978-65-5691-054-3
Formato: 13x19 cm
Encadernação: brochura
Preço: R$ 49,50
Editora: Cobogó