1929, de Rafael Fava Belúzio
Uma imagem (ainda que borrada) na parede
Quem pega 1929, livro de crônicas de Rafael Fava Belúzio, para ler, logo é posicionado sob uma perspectiva muito significativa. A imagem das páginas 4-5 coloca o/a leitor/a, no primeiro plano, diante de dois cômodos de uma casa abandonada, em ruína, com paredes ainda parcialmente erguidas, mas com os escombros do telhado e tijolos pelo chão. Uma vegetação invade esse resto de casa pelas laterais e por uma pequena janela na parede de fundo. Em um plano intermediário, interceptada por essa ruína doméstica, adivinha-se a vista geral de uma cidade, submersa em um vale, da qual se destacam indistintamente apenas telhados e janelas. Ao fundo, um paredão de montanhas e serras. Entre ruínas e natureza, uma cidade se espraia.
Essa é uma das portas de entrada (entre outras três imagens que a acompanham nas primeiras páginas) para tentar compreender um elemento que serve de lente de aumento utilizada nas 29 crônicas que o autor selecionou para compor um objeto fractal e representar uma forma de ver a cidade mineira de Carangola. O fragmento de casa em primeiro plano é uma marca que se impõe, alerta e atravessa o/a leitor/a ao longo do livro. Sua carga metafórica se liga à cidade no segundo plano: a cidade também é um espaço doméstico, de reconhecimento, intimismo e familiaridade, como também (ao modo freudiano) de estranhamento, rejeição, ‘infamiliaridade’. Por essa via, é possível perceber certo tom que as crônicas vão assumindo: pinça-se uma cena, um sentimento, uma impressão, um fato comum; emoldura-se esse elemento com intertextos literários mais (ou nem tanto) conhecidos; reveste-se com certo tom por vezes irônico, por vezes sarcástico, outras de humor, outras ainda mordaz; mas infiltra-se, pouco a pouco, certo afeto exangue e delicado pelos vestígios que essa cidade fragmentada deixa na voz e nas lembranças do sujeito.
O conjunto das crônicas é amparado por um trabalho recorrente de intertextos da literatura brasileira. O tecido gerado a partir desse processo, de filigrana delicada, demarca o tom no campo dos recursos sustentados pela ambiguidade (ironia, humor & cia.), mas também estabelece certo olhar fraterno com o elemento que serve de núcleo gerador da crônica. Nesse sentido, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Machado de Assis, Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Gonçalves Dias, Bilac, Alencar e outros mais são o estofo para poder capturar uma cena e fazer deslocar o olhar do/a leitor/a. Esse movimento de captura é silencioso, sem estardalhaço; sem enobrecer ou menosprezar em definitivo o que a cidade contém, mas sempre a conduzir um deslocamento contínuo, fragmentário com certeza, mas coerente com a operação que se quer desenvolver.
Aquela imagem que julgo uma porta de entrada para o livro é tão simbólica quanto o próprio processo que caracteriza a natureza da crônica e que Rafael Belúzio leva a certa exaustão na composição de seus textos. Se a fotografia é o fragmento fixado de um momento; se a crônica é o fragmento de uma mirada sobre algo ou um momento; se a memória é constituída por fragmentos que tentam se colar para gerar uma ilusão de integralidade – o fragmento é o próprio moto contínuo que norteia este volume de crônicas. São textos com um potencial fotográfico e memorialístico que tentam representar as diversas formas de afeto que marcam a vida em uma cidade dita do interior. Interior de quê? Interior de onde? Interior de quem?
Não é por menos que a última crônica, “Morar fora”, não datada, se apresenta como uma espécie de ‘crônica de saudades’ que reúne os elementos mencionados ainda agora. É uma reunião melancolizada de espectros na qual todo/a aquele/a que passa ou passou pela experiência de sair da cidade natal se reconhece, e porventura é capaz de juntar ao texto alguns outros fragmentos de sua própria experiência. Mas também essa última crônica talvez revele um pouco da perspectiva metafórica do sujeito do discurso, que (a acreditar em sua minibio), posicionado dezenove andares acima do nível do solo, retoca 29 crônicas escritas entre 2009 e 2014 no apartamento 29 daquela altura...
A impressão que fica, entre outras, é que as 28 crônicas do morar dentro (de Carangola) já trazem em si o morar fora; que, embora o morar fora seja uma experiência a posteriori, o que marca a nostalgia já estava no dentro, apesar de não (ou pouco) visto.
por Luiz Morando - Doutor em Literatura Comparada pela UFMG. Pesquisador independente sobre memória das identidades LGBTIQA+ de Belo Horizonte.