Saramago em 100 anos
Neste ano em que se comemora o centenário de nascimento de um dos maiores escritores em Língua Portuguesa - o prêmio Nobel José Saramago -, e, por isso, a Companhia das Letrinhas está com dois livros ilustrados do grande autor: Uma luz inesperada, inédito nesse formato, e O silêncio da água, em nova edição.
Assim como a maioria das obras para crianças do autor, Uma luz inesperada não foi escrito originalmente para os pequenos leitores. Foi publicada na imprensa portuguesa em 1972, essa crônica esteve entre os textos escolhidos para compor o livro A bagagem do viajante (Companhia das Letras, 1996) sob o título “E também aqueles dias”. Mas chega agora, pela primeira vez, aos leitores no formato de livro ilustrado, com sensibilidade e apuro de linguagem capazes de encantar tanto crianças quanto adultos. O escritor, que dizia não saber escrever para crianças, se revela aqui em toda a sua habilidade de fabulação e imaginação, dialogando com o universo íntimo de leitores de todas as idades.
A obra começa narrando uma pequena viagem que o (então) menino José Saramago fez com seu tio, indo da aldeia em que vivia até a cidade portuguesa de Santarém para vender alguns porcos a pedido dos avós. O caminho é percorrido a pé, com uma pausa em um estábulo para pernoitar. No conto, os pequenos acontecimentos tornam-se "dias gloriosos", em que a felicidade é tão simples e arrebatadora quanto uma viagem com o tio, um luar inesquecível ou a chuva que cai, mas não alcança o menino.
"E houve também aqueles dois gloriosos dias em que fui ajuda de pastor, e a noite de permeio, tão gloriosa como os dias."
Um momento feito de encantamentos pelas coisas cotidianas, que passam despercebidas aos mais velhos e que marcam para sempre a criança e constroem a sensibilidade e o imaginário que vai acompanhar por toda a vida.
"E eu que só tinha doze anos, como já ficou dito, adivinhei que nunca mais veria outra lua assim. Por isso é que hoje me comovem pouco os luares: tenho um dentro de mim que nada pode vencer", conta Saramago, a certa altura.
O silêncio e a observação solitária são também traços da infância que o autor narra, como se ser criança fosse mesmo habitar um outro espaço, um outro tempo, impossível de compartilhar ou reduzir a palavras: mais do que dizer, a infância é feita de sentir.
A partir da rememoração desse episódio, Saramago compartilha seu olhar sobre a própria meninice. "O mito do paraíso perdido é o da infância — não há outro", escreve, logo no começo do livro, sintetizando o paraíso que ele vai nos revelar nas experiências vividas pelo pequeno José e em seus efeitos na alma do menino.
Entre os lançamentos comemorativos de 2022 está também outro livro para crianças: uma reedição com novas ilustrações de O silêncio da água, cuja primeira edição foi publicada pela Companhia das Letrinhas em 2011.
Editado como livro ilustrado pela primeira vez em 2011, o título ganha agora novas ilustrações, assinadas pela espanhola Yolanda Mosquera, artista cuja obra foi premiada e exibida em diversos países.
Em cores complementares e análogas, a partir de uma paleta que vai do verde ao marrom, passando pelo laranja, as ilustrações trazem movimento e ludicidade a um episódio da infância de Saramago que ele não escreveu, a princípio, para a audiência infantil.
Saramago costumava dizer que não sabia escrever para crianças. A maioria dos textos dele publicados para esse público foram, originalmente, escritos para leitores adultos. Caso também da passagem registrada em O silêncio da água, cujo texto foi extraído do livro As pequenas memórias.