Literatura e arte em Sidney Rocha e a leitura de Fernanflor
Há alguns anos, ao adentrar a livraria cultura do Recife Antigo, deparei com alguns títulos que não me eram estranhos. Eram títulos de autores pernambucanos ou radicados em Pernambuco. Um entre eles me chamou a atenção pelo autor e pelo aspecto. Eu me refiro ao romance Fernanflor, do cearense radicado em Pernambuco, Sidney Rocha – autor, entre outros, dos livros Matriuska (2009) e O destino das metáforas (2011, agraciado com o Prêmio Jabuti). Li alguma das primeiras páginas do romance e fui arrebatado ao ventre de um artista incomodado. Fui tragado por Jeroni Fernanflor, o herói do romance de Sidney Rocha, um aprendiz e mestre da própria arte, que pintou princesas, rainhas, a alta corte e ruas de cidades por onde andou. Mais do que tudo, Fernanflor é um retrato da existência do artista em sua mestria de domínio e de dúvida: o que contém a arte nos liames da existência?
O romance de Sidney Rocha passeia pela existência deste artista que, desde jovem, ousa perscrutar os caminhos do próprio destino. Sem se ater aos detalhes reais, transcende os significados do literário e do não literário. Atribui capítulos às cores, significados a lugares, sensações a pessoas retratadas em telas e, finalmente, o romance se compõe de ondas que, indo e vindo, demonstram um mimetismo do que seria um artista plástico em seu processo de inspiração para a vida.
Sidney não tem pressa. Cada capítulo é de ser degustado como quem aprecia a noite estrelada de Van Gogh. Os tons, matizes, nuances e sentidos são aguçados pela experiência do viver. E é nesta ousadia de ritmo, alugada à benfazeja arte do contar muito em poucas palavras, que as metáforas descrevem um destemido narrador flanante. Ora, Fernanflor escapa ao narrador onisciente para flanar através de seu corpo, de sua vida e da sua arte. Fosse o flanêur de Baudelaire ou o indivíduo blasé de Georg Simmel, diria que Fernanflor reage à superexposição dos estímulos com a calma de um esteta de si, das decisões que toma, do passado que recobra sob inspiração do momento.
O livro, por sua vez, é dividido em capítulos ambientados em determinados lugares. Engana-se quem pensa que a força desta geografia vem de fora. É translúcida, tragada de fora para dentro. Não sobrevive senão às impressões líricas da imaginação de um pintor, cujo mundo de fora já não importa tanto. Diriam alguns que é a fórmula de um processo de individualização, cuja tendência contemporânea mais se acerba que se acanha perante as opiniões. Isto torna Fernanflor um retrato de época, uma época na qual o sujeito se avoluma mediante os turbilhões do mundo. E, para todos os efeitos, o que interessa aqui é como estas ideias se apresentam na narrativa.
Outra característica presente em Fernanflor está nos indícios históricos que nos levam a pensar em Fernanflor como um dos filhos de um dos barões do nordeste brasileiro. Logo no início, percebe-se que Fernanflor é o filho de um barão endividado, mas interessado que o filho estude em Bressol, lugar onde toma contato com a sua arte. Diante deste quadro, podemos dizer que Fernanflor é também um retrato dos filhos de barões de engenho do nordeste brasileiro, tão bem retratados por Gilberto Freyre, quando mediante a derrocada de um determinado sistema os barões tiveram de investir na educação dos filhos como uma maneira de legarem, de algum modo, um pouco do seu poderio.
Afora este breve introito histórico, diria que Fernanflor é uma experiência mais sensorial do que descritiva. Explico: diante das pressões de uma narrativa que diga, Fernanflor pede que sinta. Não espere deste flanêur uma teoria das coisas reais, mas das sensações imaginadas. Se a realização desta geografia de dentro em Fernanflor se dá por um aprendiz e mestre da arte e da pintura, o escritor habilmente tenta expor como este artista pensa a própria existência. E temos aqui um esforço de conseguir uma narrativa que dê conta de um processo de estilização da própria vida, algo que não nega o reconhecido esforço do escritor em transpor esse processo para o texto, e aos olhos de um grande artista.
Este não é, por fim, um romance de objetivos preclaros e caminhos curtos. Como diz o autor, a respeito de uma personagem: “Ela está eternamente vestida para grandes ocasiões nenhumas”. O livro de Sidney Rocha tenta mostrar que as nuances configuram o fio sensível da vida. O desafio de transpor a experiência filosófica e sensorial de um artista mostra não somente como a vida se compõe dessas matizes únicas, de grandes ocasiões nenhumas, mas de uma experiência de leitura para além do mundo que, inaudito, se pode sentir.
Sobre o autor
João Matias é escritor, sociólogo e professor. Docente na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou O Lugar dos Dissidentes (2019) pela Editora Escaleras, dentre outros. É um dos editores da Revista Blecaute de Literatura e organizador do Encontro de Literatura Contemporânea, em Campina Grande - PB.