A pediatra, de Andrea Del Fuego
Cecília é uma pediatra que detesta crianças. Segue seu ofício sem muito gosto, sem um grande sentido ou vocação transcendental. Filha de um endócrino pediátrico e uma enfermeira, acabou sendo o que se esperava, a profissão mais cômoda e que lhe trouxesse estabilidade e prestígio.
Para além de pediatra, Cecília é uma típica representante da classe média brasileira, que encontra na desigualdade um trunfo para se senti melhor e superior. Aquela classe média que odeia a ascensão do pobe, que hostiliza a felicidade alheia e quer normatizar o mundo que lhe cerca.
Del Fuego, com humor mordaz, escancara em contrastes sutis e tão bem enraizados à trama principal, a ponto de passarem despercebidos ao leitor distraído, as contradições de sua protagonista e, em certa medida, de tudo que representa.
A pediatra rivaliza com Jaime, adepto a estratégias alternativas para o parto humanizado e natural, como a prática de ioga e meditação para gestantes e o acompanhamento por doulas, num parto natural livre de médicos e do ambiente hospitalar. Cecília persegue Jaime com o intuito de desmascará-lo.
No âmbito pessoal, é uma mulher solitária e mesquinha. Embarca num caso com um homem casado, cujo filho, Bruninho, acaba por despertar nela um sentimento inedito. Uma criança a despertou para um sentimento materno que desconhecia e abominava. Sua obsessão volta-se ao menino e a modos de trazê-lo para mais próximo e fazê-lo seu.
Toda a narrativa é sob a ótica da pediatra. As personagens femininas são tatadas com maior ênfase e desprezo: empregada grávida do cunhado, a advogada esposa do amante sempre dopada em razão de uma segunda gravidez, a babá espertalhona que não ama o menino, a diretora da escolinha que maltrata as crianças dopando-as com antitérmico, a mãe da pediatra que é fria, fútil e indiferente.
Por sua vez, os personagens masculinos são vistos com curiosidade e utilitarismo. O amante, apesar de complicado, é bom de cama e lhe serve por distração. Robson, segurança da pizzaria e cunhado da empregada, é interessante. O pai é que é visto como lugar de respouso e consolo. Nele ela pode sentar no colo e receber carinho, como se ainda fosse uma menininha. A adminiração que nutre por ele enquanto pai, médico e esposo, carrega esse olhar infantil.
O tédio de sua vida, em que nada lhe apetece ou desperta grandes afetos, só é quebrado por Bruninho. O menino é responsável pelos mais intensos conflitos da personagem e representa um ponto de guinada no romance.
Andrea Del Fuego questiona a maternidade, os afetos, a independência feminina fugindo dos clichês comuns a muitas das obras que vemos por aí. Abre mão do sentimentalismo e dos tons de cinza para construir uma personagem que de tão destável se faz querida, uma adorável canalha. O lugar ambíguo que ocupa na relação com o leitor faz de sua narradora uma personagem marcante.
Cecília é superior a todos. Superior a empregada condenada por transar com o cunhado, mesmo que ela tenha um caso com um homem casado. Superior a Cacá, a esposa do amante e a péssima mãe de Bruninho, mesmo que ela abomine todas as mães zelosas e preocupadas que atende em seu consultório. Odeia o colega pediatra taxando-o de charlatão e ganancioso, mesmo querendo derrubá-lo para que ela mesma torne a lucrar com os partos de crianças com as quais ela não se importa.
Todos esses elementos reunidos aqui fazem de A pediatra um romance divertido, leve e profundamente irônico.