César Vallejo e seus "Poemas humanos"
Editora 34 publica Poemas humanos de César Vallejo
Escritos ao longo da década de 1930 e publicados postumamente, este livro é um dos pontos altos da poesia do peruano César Vallejo (1892-1938). O vocabulário hipnótico, a um só tempo coloquial e preciso; os versos livres, mas trabalhados em filigrana, muitas vezes escondendo métricas complexas; a gama de temas, que vão do mundano e do político ao trágico e ao existencial — tudo isso converge em poemas de intenso lirismo e igual modernidade, com poucos paralelos na poesia do século XX. Ler Vallejo é uma experiência extrema, capaz de levar corpo e alma à beira da vertigem.
O mesmo vale para a experiência de traduzir Vallejo, como advertia o próprio autor ao afirmar que “os melhores poetas são menos propícios à tradução”. Nesta nova versão brasileira dos Poemas humanos, Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco enfrentaram o texto escarpado de Vallejo sem se conceder atalhos fáceis. O resultado é esta edição — bilíngue e acompanhada de notas copiosas —, que busca tornar audível em português do Brasil uma das vozes mais poderosas da poesia latino-americana.
O autor que nasceu nasceu em Santiago de Chuco, na província de La Libertad, nos Andes peruanos, em 1892, era o mais novo de doze irmãos. Vallejo cresceu num ambiente familiar austero, conservador e rigidamente religioso. Por volta de 1915, começou a publicar poemas na imprensa local, alguns dos quais seriam retrabalhados e incluídos em seu primeiro livro, Los heraldos negros, publicado em 1919, pouco depois de Vallejo se mudar para Lima. Em 1920, o poeta se envolveu num sangrento conflito político em sua cidade natal que o levaria à prisão, onde o mantiveram por quatro meses. Durante esse período, começou a escrever os poemas que mais tarde formariam Trilce (1922), um dos marcos fundadores da poesia de vanguarda em espanhol. Em 1923, Vallejo se mudou para Paris, cidade em que moraria pelo resto da vida, com exceção de uma estadia de um ano em Madri. Na Europa, o poeta escreveu contos, peças de teatro, relatos de viagem e o romance El tungsteno, além de artigos jornalísticos, que foram seu principal ganha-pão entre 1925 e 1931. Contudo, viveu quase sempre em situação precária, sem renda fixa e com problemas de saúde. No final de década de 1920, Vallejo aproximou-se do marxismo e se envolveu com a militância comunista, o que teria influência decisiva sobre sua obra literária a partir de 1928, quando fez a primeira de suas três viagens à URSS. No mesmo ano, começou a viver com Georgette Philippart, que seria sua companheira até sua morte. Autor de vários volumes de prosa, Vallejo é hoje considerado um dos mais importantes e inventivos poetas latino-americanos de todos os tempos, apesar de só ter publicado dois livros de poesia em vida. Poemas humanos e España, aparta de mí este cáliz foram publicados postumamente. Morreu em Paris, em 1938, aos 46 anos de idade.
Quem traduz seus poemas é Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco. O livro traz ainda um texto de orelha de Alberto Martins, onde diz:
Poemas humanos, publicado postumamente em 1939, recolhe poemas escritos entre 1931 e 37 — período crucial da vida do poeta no qual, enquanto a Europa se divide entre a ascensão do fascismo e o chamado de adesão ao comunismo, Vallejo sobrevive precariamente ao lado da companheira Georgette, em quartos pobres de Paris. Este é também o período da sua última viagem à Rússia, da temporada em Madri, do convívio com Lorca e outros poetas espanhóis da geração de 1927, do mergulho na militância de esquerda (que o torna figura vigiada pelas autoridades francesas) e da retomada dos surtos criativos de poesia, após anos dedicados a ficções, ensaios e expedientes jornalísticos. Existencialmente, é o momento em que se amplia o sentimento trágico, presente em sua obra desde o início, que alcança nessa fase uma depuraç&atild e;o vertical e se manifesta de forma plena e implacável em poemas excepcionais como “Pedra negra sobre uma pedra branca”, “Hoje eu gosto da vida muito menos”, “Considerando a frio, imparcialmente” ou “Os nove monstros”, para citar apenas alguns dos vários poemas antológicos incluídos neste volume.
Ler Vallejo é uma experiência-limite.
O livro pode ser adquirido no site da editora clicando aqui
Abaixo, você pode ler dois poemas do livro.
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Chapéu, casaco, luvas
Na frente da Comédia Francesa, está o Café
da Regência; lá dentro há uma saleta
recôndita, com uma poltrona e uma mesa.
Quando entro, a poeira imóvel já se encontra de pé.
Entre meus lábios feitos de látex, vai acesa
a brasa de um cigarro, e na fumaça vê-se
duas fumaças densas, o tórax do Café,
e no tórax, um óxido profundo de tristeza.
É preciso que o outono se enxerte nos outonos,
é preciso que o outono se integre de renovos,
a nuvem, de semestres; de pômulos, a ruga.
É preciso ser louco postulando
que cálida é a neve, que ágil a tartaruga,
e que simples o como, que fulminante o quando!
*
A cólera que quebra o pai em filhos
A cólera que quebra o pai em filhos,
que quebra o filho em pássaros iguais,
e o pássaro, depois, em ovos mínimos;
a cólera do pobre
tem um azeite contra dois vinagres.
A cólera que quebra a planta em folhas,
e a folha em botõezinhos desiguais,
e o botão, em ranhuras telescópicas;
a cólera do pobre
tem dois riachos contra muitos mares.
A cólera que quebra o bem em dúvidas,
a dúvida, em três arcos semelhantes
e o arco, então, em tumbas imprevistas;
a cólera do pobre
tem um só aço contra dois punhais.
A cólera que quebra a alma em corpos,
o corpo em órgãos tão dessemelhantes
e o órgão, em oitavos pensamentos;
a cólera do pobre
tem um só fogo contra duas voragens.