Visão noturna, de Tobias Carvalho
Visão noturna é o novo livro do gaúcho Tobias Carvalho e conta com quatro contos. Apresenta narativas que beiram o insólito, quer em mergulhos no onírico, quer em situações inusitadas.
Aspectos comuns
Os quatro contos funcionam bem no livro. Apesar de apresentarem temas distintos, o livro consegue manter consistência e unidade (que parece ter virado regra quando se fala em livro de contos). Talvez parte disso se deva a linguagem fluida e carregada de oralidade, não como emulação da fala, mas pela aproximação entre narradores e leitores, por essa sensação de que tudo está sendo contado por um amigo numa mesa de bar, num bate-papo descontraído.
Em comparação com As coisas, com o qual venceu o Prêmio SESC em 2018, Tobias aparece mais maduro. Preservou aspectos da linguagem e contrução narrativa, porém aponta em outra direção. Se em sua estreia o foco estava nas vivências e experiências de jovens gays de classe média, aqui se volta para o inevitável mergulho na vida adulta.
As ambições, os egos, as vaidades, as frustrações, a necessidade de reconciliar-se com o passado para trilhar o próprio caminho permeiam, em menor ou maior grau, as suas narrativas.
Sonhos lúcidos
O primeiro e quarto contos são mergulhos no onírico, no sonho como matéria-prima da realidade e no quanto se poderia viver num sonho ou a partir dele.
Aquela sensação perversa/amarga de quando se entra na vida adulta e percebe a discrepância entre o que se tornou e o que sonhava faz-se presente em Turno da noite.
Um homem jovem preso a rotina burocrática de um bom emprego descobre a possibilidade de viver nova vida no mundo dos sonhos através da técnica de sonhos lúcidos. Ali descobre o grande amor de sua vida, viaja o mundo, faz planos de futuro, afasta a solidão e a falta de sentido que habita os seus dias, que se tornam uma longa espera para poder reencontrar a amada que mora do outro lado do mundo.
O modo como somos apresentados, quase uma sequência cinematográfica, a esses encontros, a esse mundo perfeito, surpreende a partir da existência da lucidez, da constatação cruel de que o melhor não passa de um sonho.
Os sonhos lúcidos reaparecem no quarto conto, Eu tenho um sonho recorrente, no qual o narrador empreende uma busca por sentido. Descobre olhando ao seu passado de bullying durante a infância e o modo como encontrou de contorná-lo faz com que revisite lembranças esquecidas numa tentativa de reconciliação consigo. É um conto que poderia descambar para soluções demasiado previsíveis, mas ao trazer o foco para os dilemas pessoais do narrador acabam por lhe trazer uma perspectiva que se mantém interessante até o desfecho.
Os outros contos
Arromanticidade, segundo conto do livro, me ganhou de duas maneiras: a) o ponto de partida, como quem desenrola um novelo, e; b) pelo tema inusitado e quase non sense em certas passagens.
Uma mãe solo batalhando para criar a filha entre crianças mais abastadas e que vê sua vida mudar radicalemente aa partir de uma acidente numa festa infantil. A discrepância entre a leveza da narração e a tortuosidade dos eventos narrados cria uma atmosfera wtf que prevalece até o fim.
Hermílio e Ygor soa como uma paródia de duas das espécies mais curiosas do ecossistema literário: o escritor ruim que se acha genial e o escritor que vira cult.
A obsessão de um e seu desejo por fama leva a detratar o outro. Na mesma pequena cidade não há espaço para dois escritores. Esse sentimento de teritorialidade, que se manifeste de diversos modos no mundo literário, ganha evidência e pauta os conflitos, a exacerbação pela genialidade, aos falsos perfis para fazer resenhas e avaliações positivas no Goodreads, Skoob e congêneres, confere humor ao conto. Impossível não pensar em nomes, causos, histórias e perfis que a gente esbarra por aí.
Conclusão
Visão noturna foi uma grata surpresa. É divertido, leve, fluido. Apresenta um escritor em desenvolvimento - quando posto em comparação com seu trabalho anterior. Soa como alguém, usando uma métafora que gosto muito, não se desculpa por não ter essa ou aquela ferramenta, mas faz o que é preciso com as ferramentas que possui. Essa é a minha percepção ao ler esses contos, a de um escritor consciente de suas habilidades e limitações que entrega o que de melhor é capaz de fazer. E que venha o próximo.