Os Continentes de Dentro, de María Elena Morán
Quantos limites é possível testar a um só tempo? Entre diários, cartas e diálogos com fragmentos de outras obras literárias, a venezuelana María Elena Morán, em seu livro de estreia, Os Continentes de Dentro, publicado no Brasil pela Zouk, tenciona a forma clássica do romance e vasculha, simultaneamente, explorando bem a transição entre os gêneros textuais, quanto ódio pode existir no seio de uma família e a fronteira opaca e volátil que separa a sanidade da demência.
Insatisfeita com o trabalho de radialista, ainda abalada com o rompimento de um namoro de cinco anos e asfixiada por uma mãe controladora, Sofia decide descobrir o paradeiro da avó materna, Aída, ostracizada pela família em algum hospital psiquiátrico há mais de uma década, depois que, durante um surto, tentou afogar a única neta. A ideia surge quando, revirando pertences antigos da avó, Sofia encontra, escondidas dentro de livros transformados em cofres, cartas que Aída lhe escrevera no início da doença, e que sintetizam a realidade que aos poucos começara a tecer: a de que Sofia era uma sereia que ela, vó, Sentinela do Mar, precisava guiar de volta à terra natal.
Os textos também apresentam a Sofia informações que a família não lhe transmitira, como a de que Aída era pintora, mas que o marido queimou seus quadros e a proibiu de pintar, ou de como a privaram de contato social quando as alucinações tiveram início, revestindo de humanidade injustiçada uma figura que a jovem fora instruída a odiar como sua potencial assassina.
Depois de esgotar as clínicas onde poderia encontrar a avó, Sofia se depara com uma última possibilidade: que Aída tivesse sido internada na ilha de Salos, na qual se instalou, anos antes, o Hospital São Siméon, fora de operação desde que a Colômbia reclamara soberania sobre o território. Depois de convencer, com muito custo, um jovem pescador a levá-la até a ilha, considerada agourenta por marinheiros mais velhos, Sofia descobre que, abandonadas por médicos, enfermeiros, pelo poder público (de dois países) e por suas respectivas famílias, as pacientes antes reclusas construíram sua própria nação e governam a si mesmas, isoladas no meio do Pacífico.
O nome São Simeón não é aleatório. Quando o cristianismo era proibido, o santo se fazia passar por louco, mendigava e viajava nu para pregar o evangelho sem ser punido, e deu origem a uma legião de missionários que fingiam insanidade para levar adiante sua doutrina sem atrair atenção de autoridades ou louvores por parte de fiéis. Em Salos, além de criar uma nova identidade para ser aceita na comunidade erigida pelas ex-pacientes, presas e livres a seu modo, Sofia se questiona o quanto cada uma das mulheres realmente sofre de algum transtorno, e mesmo nos casos evidentes precisa confrontar a loucura com a normalidade ostentada pelo mundo de fora, que as rejeitou com o mais conveniente silêncio.
Decidida a preencher a lacuna da história familiar, Sofia encontra, na biblioteca da ilha, anotações que a avó lhe remete do passado, como se Aída soubesse que a neta um dia viria. As mensagens estão espalhadas por todas as obras que aludem de alguma forma ao oceano: Relato de um Naufrágio, O Velho e o Mar, A Ilha do Tesouro, textos de Melville e Dafoe. Além de portal para a terra natal das sereias, o mar é insígnia da obsessão pela tarefa que a avó assumiu e não cumpriu e da distância que lhe foi imposta em relação ao mundo. Reunindo mais de dez anos de rasuras e comentários nos livros, Sofía começa a entender o passado e o funcionamento da ilha, processo que alimenta tanto seu medo quanto seu encantamento pelo estranho reino fundado e mantido pelas ex-internas.
Salos evoca o território mítico das Amazonas e suas figuras poderosas, austeras e independentes, que desprezam ou mesmo odeiam os homens e o mundo exterior, um lugar onde a liberdade e a disciplina parecem não concorrer e sustentam identidades puras e autênticas, mas evoca também a prisão de Alcatraz, a aposta inapelável que a fé na segurança deposita na subtração da liberdade alheia, a eliminação indireta e latente dos desvios e os restos de humanidade que sobram quando o Estado falha em cumprir seus deveres. Decifrar essa ilha é o desafio memorável de Sofia e de quem lê Os Continentes de Dentro.
por Júlio César Bernardes: internacionalista, linguista e mestrando em Sociologia.