Memórias Sangradas, de Ricardo Beliel
Lançado pela Editora Olhares, com apoio do programa Rumos Itaú Cultural, O livro Memórias sangradas: vida e morte nos tempos do cangaço, de Ricardo Beliel, reúne histórias de 43 personagens que tiveram suas vidas diretamente ligadas ao cangaço, fenômeno que dominou o interior de sete estados nordestinos entre os anos 1920 e 40 e está impregnado no imaginário cultural popular brasileiro. Além disso, traz 125 fotografias autorais e históricas.
Foram nove longas viagens à região, entre 2007 e 2019, em uma investigação incessante para montar o quebra-cabeças dessa história. Com sua vasta experiência em grandes reportagens, Ricardo Beliel buscava os resquícios das memórias do cangaço. Enquanto era tempo – em uma história que está para completar um século –, queria ouvi-los direto da fonte de quem conviveu com o movimento. No texto, os depoimentos diversos e a experiência pessoal do autor em busca de seus personagens em seus próprios ambientes originais são apresentados através de uma narrativa em que se misturam elementos das linguagens da reportagem, da crônica histórica e, em parte, como um diário de viagem.
Onze mil quilômetros foram percorridos, em grande parte em precárias estradas do interior sertanejo, resultando no encontro com tais personagens, contemporâneos ao cangaço, residentes em quarenta e nove localidades – palcos de lutas, amizades, emboscadas, amores e massacres entre cangaceiros, volantes, jagunços, coronéis e camponeses; um mundo sertanejo que está se extinguindo nas suas tradições orais.
Em cada personagem, testemunha-se esse fluxo da memória e do esquecimento, e se revela uma potente e épica narrativa das memórias pessoais que envolvem tradições e lugares. Os entrevistados, em sua grande maioria pessoas quase centenários, são descendentes da época do cangaço, personagens de um ciclo da história do Brasil, com suas falas resgatadas no livro para que não fiquem no esquecimento, como pedras silenciosas no meio do caminho.
“Que prazer ouvir prosas e histórias de vidas desse sertaozão sem porteira. Que prazer há nas palavras, olhares e gestos daqueles que nos contam tantas histórias maravilhosas sem a arrogância dos que acreditam saber mais que os outros. Esses sabem, sabendo de forma simples, as coisas essenciais de suas vidas. O coração do sertão nordestino, em cujas artérias empoeiradas circula o sangue que mantém a memória viva desses tempos do cangaço, pulsa nas coisas simples, nas conversas de fim de tarde, nas histórias que se revelam por entre olhares e gestos de generosa sabedoria. O sertão é Deus e o Diabo, é a degola do Brasil.” Ricardo Beliel
Ao completar oito décadas de suas mortes, Lampião e Maria Bonita parecem estar mais vivos do que nunca no imaginário coletivo dos que vivem pelos quatro cantos do agreste e do semiárido nordestino. Seus nomes e vidas, embora não façam parte das lições escolares, são reconhecidos e reverenciados por qualquer cidadão brasileiro, ao contrário de tantos "vultos" esquecidos de nossa história, obrigatórios nos currículos acadêmicos. O tema cangaço tem sido um estímulo permanente para a literatura, o cinema, as artes visuais e a cultura popular por mais de um século. Com a riqueza semântica da tradição oral que os caracteriza, os relatos reunidos no livro ajudam a recuperar para a historiografia de nosso país um caminho para redesenhar a memória e mística da gente sertaneja, suas histórias entrelaçadas à época do cangaço, seus espaços sociais, religiosos e costumes.
As pesquisas e viagens para a realização do livro Memórias sangradas: vida e morte nos tempos do cangaço coincidiram com as efemérides do sertão marcadas pelos 80 anos da morte de Lampião, Maria Bonita e outros nove cangaceiros na Grota de Angico (1938); cento e vinte e um anos da morte de Antonio Conselheiro e da batalha final da Guerra de Canudos (1897); como também um século e duas décadas do nascimento de Lampião (1898), cem anos do nascimento de Volta Seca (1918) e setenta e oito anos da morte de Corisco (1940), fato considerado como o ato final do Ciclo do Cangaço.
Trechos do livro
“Apenas uma légua separa o Mundé da fazenda Tapera dos Gilo. Precisamos atravessar a pé o leito seco e arenoso do riacho Capim Grosso para chegar a um pequeno cemitério onde estão reunidas as vítimas da chacina comandada pelos cangaceiros Lampeão e Horácio Novaes contra a família Gilo. Em um campo silencioso cercado por braúnas, umbuzeiros e juremas, paira uma calma misteriosa, paisagem impregnada de mistérios, como as que vemos e imaginamos em velhas fotografias. Pedras por todos os cantos, galhos e folhas, que, suspensas, em árvores estáticas não respondem ao vento, aqui são testemunhas mudas de muitas histórias. Em silêncio, fotografo o campo santo.”
“No caminho para o Raso está o povoado de Juá, em cuja única rua se fazia a ida e a volta para o sertão dos Pankararé. Paro num pequeno bar para matar a sede e aproveito para bater a poeira que carrego no corpo. Na rua de terra, envolta pelo contraluz do entardecer, percebo vir em minha direção uma senhora bem magra com marcas profundas no rosto. Me olha ressabiada, sem disfarçar a curiosidade com meu jeito de outras terras, e me pede com voz tímida que converse com seu pai. Desabafa que todos falam de suas aventuras no cangaço, mas que dele próprio nunca ouviu uma única palavra sobre isso. Queria saber da boca do pai as histórias que conhecera ditas pelos vizinhos e me vê como um possível intermediário para essa difícil tarefa. Na soleira de uma casa, na rua do Sossega, me sento ao lado de José Vicente Xavier, que permanece em silêncio e olhar concentrado para além do horizonte. Uma paisagem entorpecida pela quentura do fim da tarde.
Sabendo que sua irmã, Sabina, havia se aventurado no cangaço, inicio o assunto e pergunto sobre Lampeão. Me fuzila com o olhar, por entre as rugas de seus noventa e dois anos, e sua admiração pelo chefe escapa em poucas palavras que cortam seu profundo silêncio interior: “Era um homem que cabia um abismo dentro de si”.”
“Na noite de lua nova que antecedeu aos primeiros raios de sol da manhã do vigésimo oitavo dia de julho de 1938, Dulce se afastou das barracas, na fazenda Angico, em companhia de Maria e Sila para “dar conta das necessidades do corpo”. Ficaram por alguns minutos sentadas no alto de uma pedra a observar aquele mundo sem fim na escuridão da caatinga. Dali perceberam um inquietante pisca-pisca em algum lugar perdido naquele breu e Maria comentou ser apenas um inocente vagalume. Sem desconfiarem da possibilidade de haver uma lanterna que orientava seus futuros carrascos por entre os galhos da mata, voltaram às barracas. “Aí ficamo olhando praquela luzinha. O que será? O que será? Aí quando foi depois, ninguém foi falar com o marido. Acho que nem Maria falou com Lampeão, nem Sila falou com Sereno, nem eu falei pra Creança. Quando tem que acontecer, acontece”.”
Sobre o autor
Ricardo Beliel inicia seu interesse por arte estudando gravura no MAM/RJ com Fayga Ostrower, Ana Letycia e Ruddy Pozzati e no Centro de Estudos de Arte Ivan Serpa. Em 1973 começa a fotografar, trabalhando com músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Egberto Gismonti e O Terço. Em 1976 entra para o jornalismo como fotógrafo contratado do jornal O Globo, passando depois por Manchete, Placar, Fatos e Fotos, Veja, Isto É, agência F-4, Manchete Esportiva, Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo. Foi editor de Fotografia da revista Manchete e sub-editor no jornal Lance, no qual participou da equipe fundadora. Durante seis anos fez parte da agência GLMR & Saga Associés em Paris, produzindo reportagens fotográficas na América Latina e África. Como jornalista e fotógrafo independente colaborou com Grands Reportages, Figaro Magazine, VSD Magazine, Time, National Geographic, Victory, Voyage, Colors, Geo, La Vanguardia, Los Tiempos, Ícaro, Terra, Próxima Viagem, Vice, Placar e Angola Hoje entre outros.