Pré-história, de Paloma Vidal
Quinto romance da escritora Paloma Vidal (2020, 7Letras) quer “enganar o diabo” – a escrita –enquanto persegue o começo de um amor
Por um começo
Onde começa o amor? Onde começa a sua história? Pré-história (2020, 7Letras), quinto romance da escritora argentino-brasileira Paloma Vidal, é um investimento na difícil arte – ou será ciência? – dos começos.
Mas a melhor maneira de compreender o fim de uma história de amor é mesmo voltar às suas origens? Depois do fim (que começa a existir desde o primeiro instante), é ainda possível buscar refúgio onde tudo começou?
Corta. Esta não é melhor maneira de começar. É preciso ir antes ainda.
O começo guarda um elemento essencial que passou despercebido? É comum que o presente se volte ao passado em busca de respostas, de uma explicação lógica para o fim. Mas se há “o” começo, onde ele está?
A narradora sem nome e quase sem rosto de Pré-história é movida pelo ideal de um princípio, para fazer justiça a um antigo, mas presente, caso de amor. Um amor que se perdeu como tudo o que um dia se perde: porque alguma coisa, não necessariamente o amor, deixou de ser possível.
Ela aprende rápido, ou talvez já saiba que não há como localizar esse marco zero da história. É como tentar lembrar o início de um sonho (e a memória é sempre fraca para os começos, embora guarde bem os acontecimentos do meio). A mulher compreende então que é preciso confiar nas cenas que emergem entre o início e o fim.
Mas o começo – ah, o começo – não a deixa em paz. Há sempre uma história antes da história.
Voltar não se cumpre, assim, em uma única viagem: o Brasil de 1989, cindido entre Collor e Lula, leva essa mulher à chegada de sua família argentina ao “país do futuro”, e assim à história de seus pais psicanalistas, e assim à história de seu avô editor de jornal, e assim por diante, em um rewind que poderia seguir indefinidamente, quem sabe, até desconhecidos ancestrais.
E se o começo não pertence ao que ficou para trás, conhecê-lo leva tempo, além de um desprendimento que não existe, a princípio. Logo, o começo não pode ser revelado por escavações arqueológicas. O começo é como um bicho que morde o próprio rabo: só conhece o começo quem o inventa. O fim, como o começo, é aberto. A história é, e nunca é, o que dela se escreve, ainda que recaia sobre o escritor o dever de assiná-la, formalizando seus pontos de partida e chegada. Uma história não começa por onde se escolhe começá-la; uma história não acaba onde se escolhe interrompê-la. Começo e fim não são uma essência; eles só compõem a etiqueta da narrativa.
O que Pré-história faz – apesar de que a jornada culmina em uma certeza do começo impossível – é justamente emoldurar o que acontece no meio, nesse caso, a própria pesquisa por um começo. A fixação da narradora pela suposta cena inaugural de sua história (de amor? de política?) serve de pretexto para uma insólita viagem, que dá, simbolicamente, nos primórdios imemoriais, na caverna, no ensaio da civilização.
Sua razão para recuar tão longe é convincente: quem sabe se, na primeira sala de projeção da humanidade, a história não se conte a si mesma? quem sabe se, abandonando as palavras a seu próprio “instinto”, elas não encontrem o caminho? quem sabe ainda se desarticular a linguagem, voltando à comunicação troglodita, não seja uma forma de estar mais perto da verdade?
Literatura como oficina
Escritora, tradutora, editora e professora de Teoria Literária na Universidade Federal de São Paulo, Paloma Vidal, neste romance, deixa-se de novo conduzir pelo interesse que atravessa suas quatro atividades: a literatura como oficina de experimentação. A habilidade para cruzar os fazeres crítico-reflexivo e ficcional é uma das especialidades desta brasileira que compartimos com a Argentina.
Sua obra trafega por muitos gêneros e formatos de publicação, mas sempre colocando em cena a busca por uma história e experiência “novas”, quer dizer, não dadas por nenhuma tradição, não “manjadas”, não previstas em nenhum manual. Mas a tônica de sua escrita está menos em propor novos enredos e temas que em explorar e expor os processos até eles.
Isso, às vezes, parece implicar uma disponibilidade para as escritas “não escrevíveis”, ou que se fazem como sombras, interrupções ou ensaios de outras, sempre provisórias, sempre pré-histórias. A esse propósito, Paloma mantém o blog “Onde eu não estou” (https://www.ondeeunaoestou.com/), dedicado a fragmentos de textos escritos em simultâneo, interrompidos por muitas razões, e aos deslocamentos entre as culturas argentina e brasileira, outro dos temas que não dão descanso à escritora.
Além dos textos críticos e ensaísticos, sem falar nas traduções, Paloma tem no currículo quatro romances (Algum lugar, de 2009; Mar azul, de 2012; Ensaio de Voo, de 2017, e La banda oriental, recém-lançado pelo editorial Tenemos Las Máquinas, ainda sem tradução para o português), além de livros de contos, poesia e peças.
Cortar para comunicar
Partindo, em Pré-história, justamente do que seria o estágio que precede a existência concreta de uma história, Paloma define uma espécie de projeto, cuja execução depende de uma ferramenta bastante temida pelos escritores: a tesoura.
É claro, a tesoura, o corte, tanto tem relação com o que o termo pré-história pode sugerir dentro da criação literária – a incubação ou o projeto de uma história –, quanto com o sentido de pré-história no vocabulário da historiografia, em referência ao período que antecede o advento da escrita. Com isso, cortar, na narrativa, torna-se sugestivo de uma tentativa de interromper o pensamento contínuo, atributo maior do homem racional.
Pré-história é assim um romance tomado pelo medo das adulterações da linguagem, em especial quando ela é mobilizada pela escrita. Desse modo, também, pela noção de que uma expressão “primitiva” será mais fiel à verdade, e mais propícia à comunicação. A narrativa guerreia com o princípio de dependência que o ato de contar adquire em relação à escrita, flertando com a fantasia de contar uma história sem escrita, que prescinda – ou pareça – dela prescindir.
Trata-se, a olhos vistos, de uma operação delicada, para não dizer impossível, para começo de conversa, porque o meio invocado para minar a escrita ainda é a própria. Envergonhada por depender de um recurso que a coloca tão perto do perigo que justamente quer evitar – a complicação –, a narradora se submete, por sua própria vontade, a uma vigília constante, adentrando a linguagem na ponta dos pés, como quem teme despertar um diabo de sono leve, cujo poder encantatório é seu próprio mesmerismo. Um pequeno lapso, e ela já é desviada de seus propósitos, tendo que se refazer, que recomeçar.
O artifício parece imitar algo da edição cinematográfica, testando diferentes montagens de raccords, flashbacks, elipses, timelines, assim como os efeitos dramáticos desta ou daquela música. Por meio dele, o acervo de cenas que alimenta a narrativa também passa, uma e outra vez, por acareações. O recurso/arma acode a narradora interrompendo, sempre que necessário, a hipnose induzida pela escrita, como forma de zerar sua potência entorpecente, no instante mesmo em que ela começa a agir “complicando” o caso.
O que nasce daí é uma escrita saneada, de “grau zero”, propositalmente sem potência. A narrativa avança e regride como um motor desligado logo que começa a esquentar. Com essa condução preventiva, a mulher não espera impressionar o namorado de juventude, e também já desistiu de brigar com ele. Ela – escritora por excelência – quer pelo menos não irritá-lo, de novo, com seu dom para fugir da simplicidade. Vale tudo para merecer, por um momento sequer, o olhar deste homem que passou sem passar, até mesmo “enganar o diabo” (no caso, a escrita), como na canção de Adriana Calcanhotto.
“Este livro é a sombra de um outro que eu queria escrever para te ferir, para te tirar do sério, para fazer você berrar comigo, dizendo que eu não entendo nada, que as coisas são muito simples, e eu nunca entendo, eu não quero entender, mas tudo é muito simples (...) As coisas no entanto se complicaram, aqui, entre nós, no mundo todo, por mais que você não queira. E então o livro, e a ferida, e os berros, e eu desistindo de escrevê-lo para escrever outro que falasse sobre como às vezes não é mais possível. Mas o que mesmo não é mais possível: o livro, nós, este mundo?” (VIDAL, 2020, p. 13)
Experimentar com a simplicidade é, enfim, a forma da narradora para vencer a impossibilidade de comunicação com o ex-parceiro, ou, conforme ela diz, para alcançar a “primeira pessoa do plural” (VIDAL, 2020, p. 103). É como tentar reabilitar a língua pela qual dois, outrora, (não) eram capazes de se entender. Esta “primeira pessoa do plural” é nada menos que o próprio livro.
Nele, a mulher fantasia uma impossível narração a quatro vozes, ou ainda duas narrativas dedicadas à mesma história, a sua e a dele. Ainda assim, não haveria uníssono. O desencontro seria sempre incontornável. Em todo caso, escrever um livro que busca se ajustar ao idioma íntimo de uma outra pessoa é a forma encontrada para fazer soarem, no interior dele, as duas vozes. O livro é o nós (im)possível.
Em nome deste (im)possível, vale tudo, até devolver a história à sua natureza primordial, que é, talvez, o de não ser história. Entregar a história à pré-história. A pré-história é onde a história não existe: antes – e além – da memória, da razão, da língua, do mundo. Onde só o amor existe. Corta.
Natália Campos é mineira de Belo Horizonte, é doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, escritora, revisora de textos e professora. Além da experiência de quase duas décadas com revisão e preparação de livros, produz conteúdo sobre educação, literatura, cinema e mercado editorial. Nessa travessia-travessura pelas letras, a única regra é desfrutar o texto. É autora de Desinfinito (2017) e O guru da Lopes Chaves (2016). Está entre os 12 novos poetas brasileiros contemplados na antologia bilíngue Inventar la felicidade – Muestra de la poesía brasileña reciente (2016), organizada por Fabrício Marques e Tarso de Melo.
Referências
VIDAL, Paloma. Pré-história. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2020.
VIDAL, Paloma. Não escrever / Estar entre. In: Onde eu não estou. São Paulo, [2021]. Disponível em: https://www.ondeeunaoestou.com/blog. Acesso em: 01 set. 2021.