24 de dezembro de 2021

#LeiaNordeste, a Escrita Criativa e a ideia de desenvolvimento - Parte 02

Esta é a segunda parte do ensaio sobre o movimento #LeiaNordeste, a primeira parte pode ser lida aqui. Antes de iniciar, gostaria de convidar a todos a ouvir ao episódio #LeiaNordeste do podcast Lavadeiras do São Francisco. Boa leitura.

Há muito eu acredito que devemos ler o livro Criatividade e dependência na civilização industrial, escrito pelo economista paraibano Celso Furtado, com olhos de escritores, artistas e produtores culturais. É neste livro que um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século XX reflete, dentre outras coisas, sobre as influências culturais para que a nossa criatividade se desenvolva no campo das possibilidades e de sua concretização.

Para entender o debate centro-periferia na produção literária e, pode-se dizer assim, no terreno das “consciências” é um livro fundamental. Não por outro motivo, esse debate reflete o peso de nossas influências literárias, da percepção de mundo oriunda delas e de como, às vezes, não percebemos como nossos clássicos nordestinos têm a nos informar sobre o diálogo que o escritor pode vir a ter com sua região e, ainda mais, para pensar no #LeiaNordeste e numa consciência crítica de nossa própria realidade como uma forma de produzir uma literatura nordestina tão grande e universal quanto outras.

Para que este debate não soe como um simpósio, recorro a exemplos: por vezes, Mia Couto, escritor moçambicano, recorreu em entrevistas às influências da literatura brasileira para pensar a realidade moçambicana em vias de independência política. Para ele, era todo um Brasil que retornava à África, pelo prisma de Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, dentre outros.

Não é preciso ir longe, neste particular, se pensarmos que influências José Lins do Rego, grande escritor paraibano, assumiu após os debacles políticos, regionais e sociais da experiência de ter lido A Bagaceira, romance de José Américo de Almeida. De um mesmo modo, a poesia de Augusto dos Anjos deita ecos sobre o cinema, as artes plásticas e a literatura nordestina de maneira que, possivelmente, seja impossível pensar na poesia de Luís Antonio Cajazeira Ramos, Salgado Maranhão ou de Gerardo Mello Mourão, poetas nordestinos, distante de uma realidade nordestina materializada por dos Anjos.

Essa demanda também esteve em Celso Furtado. Em seus Diários Intermitentes, vemos que, em uma das tentativas de escrita de um romance literário, a mais prolífica foi a registrada em 1955, quando o economista já estudava em Paris. Ali, Furtado desenvolveu um enredo no qual dois filhos de origens sociais distintas refletiam o despertar da consciência política numa Paraíba atravessada por contradições políticas e sociais dos anos de 1930, dez anos após o assassinato de João Pessoa e, portanto, momentos antes da Revolução Constitucionalista de 1932. O que Celso Furtado via em Marcel Proust, isto é, a sugestão de que uma literatura nacional por excelência deve abordar as crises e contradições pessoais, sociais, políticas e econômicas de um tempo e um lugar, era o que fazia de um escritor um “gênio literário”.

Lembremos que no Literatura e Subdesenvolvimento, Antonio Candido se vale da uma reflexão sobre o fato do escritor brasileiro ter um manancial infeliz de um público analfabeto incapaz de consumir seus livros, e que isso deveria mexer com o modo como o escritor se vê mediante seu público.

Celso Furtado, por seu turno, pegaria de arremate essa ideia para refletir sobre como a criatividade precisa da inventividade, e esta só é possível quando existem recursos disponíveis para que se desenvolva uma diversificação nos padrões de consumo de literatura, cultura etc. O que o economista está querendo dizer é que sem a disponibilidade necessária de referências, intercâmbios e trocas culturais (ouso dizer também oportunidades educacionais) dificilmente enriquecemos nosso horizonte de opções.

O que isso tem a ver com a escrita criativa? Talvez teria algo a ver se analisarmos que uma consciência crítica sobre nossa realidade local poderia nos levar a ampliar o campo do que é imediatamente possível em se tratando de narrativas, deixando de lado a mera reprodução de fórmulas de sucesso. Trata-se de questionar até que ponto um olhar crítico sobre nossa cultura e nossa identidade têm a nos informar sobre o que potencialmente podemos desenvolver no universo literário. E aqui tomo a liberdade de transcrever Furtado, em seu livro Criatividade e dependência na civilização industrial:

O teatro, ao permitir aos gregos aprofundar sua identidade cultural, penetrar nas raízes míticas do subconsciente coletivo, enriqueceu-lhes as vidas no nível da visão do mundo e do conhecimento de si mesmos. Heródoto, que ganhava o pão de cada dia recitando em praça pública capítulos da história das guerras pérsicas — como historiador ele lutou contra o chauvinismo dos gregos e tratou de induzi-los a conhecer o rico patrimônio cultural dos “bárbaros” —, constitui exemplo maravilhoso da emergência da consciência crítica numa cultura.

A consciência crítica sobre nossa realidade sociocultural, por essa interpretação, nos colocaria acima do que Celso Furtado chama de racionalidade instrumental; algo que, transpondo para o universo das narrativas, seria uma propensão para a mera reprodução de modelos, fórmulas de sucesso, tendências literárias de momento.

Como objeto de arte, a literatura tem o fim de enriquecer a vida humana, mas entenda-se: o enriquecer aqui não significa o mero embevecimento estilístico, mas a fruição de uma experiência de mundo (conectada a ele, e não distante dele). Pode-se dizer também uma experiência estética; longe, portanto, de fazer aqui um elogio aos “panfletos”, que tenderiam a reforçar o “nativismo” criticado na primeira parte deste ensaio. E assim questiono: o #LeiaNordeste, se conhecido como um movimento estético e político, oferta as condições para observarmos a região nordeste de um prisma que não reforce preconceitos e nativismos?

A diversificação da literatura brasileira deve ter no #LeiaNordeste um norte único. Segundo Celso Furtado, toda experiência de acumulação em uma sociedade capitalista precisa tornar possível uma diversificação dos produtos, dos objetos de arte. Isso inclui as próprias narrativas no universo literário.

Assim, o #LeiaNordeste oferta uma outra maneira de ler o Brasil: aproximar as identidades regionais da noção de Brasil. Tornar a literatura brasileira mais brasileira, ao incluir regiões historicamente silenciadas nos últimos anos desse processo nacional de narrar o que é o Brasil e por quem é feito. Muito embora os regionalismos de 1930 tivessem se encarregado, como foi dito no ensaio anterior, de reafirmar uma identidade da região, as relações centro-periferia continuaram alijando o território da literatura nordestina ao nativismo e o exotismo.

Tal realidade vem se modificando. É notória a vitória da paraibana Marília Arnaud, no Prêmio Kindle de Literatura, com o ótimo romance O Pássaro Secreto; a também Isabor Quintiere que, aos 25 anos, venceu o Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica; como ainda Débora Ferraz, Ronaldo Correia de Brito, Raimundo Carrero, dentre outros, o Prêmio São Paulo de Literatura.

A diversificação do padrão de consumo da literatura brasileira, não por outro motivo, foi uma das pautas iniciais do #LeiaNordeste. Afinal, falamos aqui de quem contará a história da literatura brasileira e com quais vozes narrativas. Vozes mulheres, negras, indígenas, LGBT. Mas também vozes nordestinas que, ao despertar a inventividade a partir da região, têm a chance de também reafirmar sua independência (de edição, produção e consumo). Afinal, é dialogando e criando nossas próprias referências que podemos dialogar com nossas formas de existência pretéritas e presentes. Como diria o próprio Furtado, no Criatividade e dependência na civilização industrial:

Quiçá haja sido o romantismo a última visão global do homem que emergiu no mundo ocidental. Essa visão projeta uma personalidade que corajosamente assume o próprio destino ao mesmo tempo que busca manter-se em harmonia com a natureza. Goethe, em sua Ifigênia, ao inverter o espírito da primeira Ifigênia de Eurípedes e sobrepor a criatura humana às forças transcendentes do destino, fez de obra-prima do classicismo o vetor dessa nova imagem do homem que por um século definiria o rumo da criatividade artística na Europa.

 Que autores definiram o rumo da criatividade artística no Nordeste? O que se pode chamar de uma literatura nordestina hoje? A ideia de desenvolvimento, aliada à ideia de escrita criativa, nos permite refletir sobre como a diversificação de narrativas revela um desenvolvimento de nossa capacidade de galvanizar o que nos vêm como influência e, com isso, responder às perguntas acima.

Se, ao abordar a peregrinação de Inácio por um nordeste imaginário, Marilia Arnaud, em seu romance Liturgia do Fim, cunhou uma abordagem sertaneja eivada de referências metaliterárias do romance psicológico brasileiro e europeu, pode-se pensar que o fez também atentando para o local de onde partia a ideia de masculinidade de Inácio, personagem principal, filho de um pai criador de abelhas (cujas metáforas neste sentido secam os olhos de tanta beleza) e com todas as causalidades de um homem nordestino. Sem apelos a nativismos ou redução do personagem a uma caricatura. A pura humanidade trescalada de elementos regionais sem parecer forçado, tampouco exótico.

A ideia de desenvolvimento caminha junto com a ideia de relativa independência em relação ao modo como desenvolvemos nossa criatividade, seja em termos políticos, sociais, culturais ou literários.

A dependência deve ser utilizada como trampolim, não fórmula. Ao produzir literatura nordestina, contribuímos para uma maior diversificação de narrativas no mercado, mas esta diversificação deve vir acompanhada de uma verdadeira tentativa de oferecer narrativas que dialoguem com uma consciência crítica da região, sem redução a exotismos ou caricaturas. Uma tentativa que aproxime o regional do nacional; aproximando-o, então, do humano e do universal.

Em sua última tentativa de romance, conforme registram os Diários Intermitentes, Celso Furtado já nos anos de 1970 rascunhava uma narrativa sobre como a tese de um orientando jogaria por terra todas as ilusões de progresso e desenvolvimento social acalentadas pela geração de seu professor orientador. Sinto que este prelado de romance caminha junto com uma tentativa: fazer com que o Nordeste abrace uma literatura que não jogue por terra suas próprias referências construídas no abrasamento de nosso sol.

Não haveria outro modo de construir uma literatura crítica e pujante sem a ideia de um desenvolvimento criativo de nossa própria biblioteca nordestina. Deste modo, quem são nossos clássicos nordestinos? Por que são clássicos e como dialogam com os contemporâneos? São questões que cabem não só aos críticos responder. Pois dialogamos aqui com o ser humano que, mesmo em crise, sente, como no poema de José Antônio Assunção, que a sua geografia é o mesmo acidente:

Paris-Texas

Algum dia sonhei Paris.
Ver a Torre Eiffel de Paris
o museu do Louvre de Paris
les fleurs des Champs-Elisées de Paris.

Depois conheci Drummond, li
Pessoa, Borges, Camus
e de algum modo fui (sem ver Paris)
o errático Rimbaud, sem tempo de Utopia.

O sentimento do mundo vinha adiposo com Bibi
mercador das flores do tédio onde aprendi
que o homem é êxule Sísifo,
estrangeiro em Paris como em qualquer lugar.

Hoje, já não sonho Paris; vivo o Texas,
Dante. Aos olhos de um homem em crise
toda geografia é o mesmo acidente.

ASSUNÇÃO, José Antonio. O câncer no pêssego. João Pessoa: Idéia, 1992.

 

Sobre o autor

João Matias é escritor, sociólogo e professor. Docente na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou O Lugar dos Dissidentes (2019) pela Editora Escaleras, dentre outros. É um dos editores da Revista Blecaute de Literatura e organizador do Encontro de Literatura Contemporânea, em Campina Grande - PB.