Escrever como um ano que finda
But it was hurting, oh God, it was beginning to hurt now and there was
no knowing if the pain was physical or psychic.
Marian Engel, The Honeyman Festival
Passei 15 dias sem escrever uma linha.
Mentira. Sem escrever uma linha do meu agrado.
Eu sempre tive essa sensação de vazio quando estou com algum bloqueio que não me permite escrever como eu gostaria.
Talvez seja o final do ano, o Natal, essa época em que todes enlouquecemos. A obrigação de encontrar certos parentes, as confras no trabalho, o povo que inventa amigo secreto (aarghh!). Talvez o problema seja mesmo eu e não você, meu bem.
Esse oco dentro do peito se intensificou após a leitura de um livro: Bear, da canadense Marian Engel (spoiler: em breve vai ter edição brasileira). Me identifiquei tanto com a protagonista, com a solidão que ela rumina dia após dia que quase pude vê-la diante de mim. Ler este livro, me lembrou que nem sempre o amor que precisamos para seguir vem da forma mais convencional. Mas voltando ao tema da escrita, porque ainda não estou totalmente pronta para falar sobre esse livro, penso:
Se a escrita é o exercício do luto, como diz um historiador francês que gosto muito, o Michel de Certeau, ao que parece, não tenho conseguido exercer o meu. Se a escrita não representa uma busca da realidade, senão a reflexão sobre uma ausência. O que me falta então? Que coisa não estou conseguindo nomear?
(Me escuto agora, relendo este parágrafo, e sorrio ao pensar no que diria minha terapeuta se escutasse isso. Quem faz análise já sabe.)
Nesse sentido, me identifico muito com Clarice Lispector que se sente morta sempre que não está escrevendo. Mas não seria essa morte também algo que se move no campo do prazer? Ou melhor, algo que indica o princípio da realidade invadindo o prazer e declarando a cessão (ainda que temporária) dele? Não seria a escritora que sofre com o bloqueio, uma viajante que ao terminar uma viagem magnífica se vê diante da triste ideia de retornar ao ponto de partida? Não tenho resposta para isso, me digam vocês.
Olho o calendário e vejo que faltam dez dias para 2021 acabar e enquanto todos agradecem este ano que se vai e rezam por outro melhor, enquanto trocam presentes e assam perus de plástico no forno, eu reflito, deitada no carpete do meu escritório (minha pele de urso) que não quero me sentir culpada por ter entregue esta coluna atrasada ou por não estar escrevendo o livro novo. Bloqueios sempre vão existir como buracos no meio da estrada e a gente precisa ter tato para saber quando é mais prudente desviar ou quando podemos atravessá-los sem furar o pneu.
No momento, eu desvio.
Me acolho nesta pausa e quero acordar amanhã e me sentir amada como a personagem do estranho livro que citei acima. Terminar este ano como quem se lambuza de mel porque ainda é doce estar viva e poder escrever.