Por que somos #LeiaNordeste? - Uma reflexão à luz de Antonio Candido e de Celso Furtado
Trago ainda em mente o impacto de ter lido Vasto Mundo, livro de Maria Valéria Rezende, como se reconhecesse em cada personagem, história e situação um pouco das cidades pequenas do Nordeste em que morei quando mais novo. Lembro-me, ainda, do impacto que tive ao ler as obras de José Inácio Vieira de Melo, poeta baiano: a diferença entre o trote e o galope (que me foi explicada por ele numa longa conversa de telefone), além de toda a mística sertaneja por trás do sítio Pedra Só e dos gestos frugais interioranos tornados míticos aos olhos do poeta. Assim, também lembro do impacto do romance O Dia dos Cachorros, de Aldo Lopes de Araújo, uma epopeia nordestina que narra os desdobramentos históricos em tons de realismo onírico sobre a Guerra de Princesa, no interior da Paraíba. E a recordação também me ajuda a lembrar dos contos de Dôra Limeira e de Isabor Quintiere, pedras insólitas do realismo mágico paraibano-brasileiro-universal.
Ainda lembro de como a trajetória de Laura, em Julho é um bom mês para morrer, de Roberto Menezes, jogou luzes sobre a realidade socioeconômica de uma jovem paraibana nos anos de 1990 na Paraíba. De como o poeta de Febre de Enxofre, personagem do romance de Bruno Ribeiro, busca uma escapatória para sobreviver enquanto escritor, em viagens lisérgicas dentro e fora de si, mas com os léxicos existenciais fincados em Campina Grande (romance em que acompanhei cada “fosso boêmio” da cidade narrado com a propriedade de quem os conhece). Isto sem falar na trajetória de Inácio, no romance Liturgia do Fim, da paraibana Marilia Arnaud: a masculinidade sertaneja, os hábitos e costumes postos à prova de uma sensaboria existencial tornada sina. Ou da prosa e poesia de Débora Gil Pantaleão, entre a viagem prosaica e psicológica do romance Uma das coisas e a poética desafiadora do livro Objeto ar.
Tudo isso para dizer que cerca a necessidade do movimento #LeiaNordeste uma preocupação legítima: como ler o nordeste segundo seus próprios autores, seu público e seus personagens e eu-líricos? Foi assim que nos idos de 2020 o movimento #LeiaNordeste ganhou corpo. Primeiramente, como uma sugestão; depois, como debate sobre a edição, circulação e produção de obras literárias por autores do nordeste, alguns destes e destas renegadas por editoras, não lidos ou esquecidos no centro-sul do país. Veio um podcast do Lavadeiras do São Francisco sobre o tema (um podcast nordestino sobre literatura), e ainda textos, debates, novas editoras e, claro, a hashtag #LeiaNordeste. Porém, o movimento de afirmação do nordeste frente à literatura não vem de hoje. Dialoga com questões que dizem respeito à noção e o sentimento de identidade, nacionalidade e regionalidade. E mais: faz frente a uma necessidade premente de pensar o que significa a literatura nordestina e brasileira no século XXI. E sobre isso o crítico Antonio Candido e o economista Celso Furtado têm muito a contribuir.
Faz quase 100 anos: o ciclo dos romances de 1930 jogou luzes sobre a realidade dos solos pobres, a escassez de recursos e as restrições enfrentadas pela população nordestina. As obras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, dentre outros, narravam um Brasil ainda às voltas com modelos econômicos, sociais e políticos superados no chamado norte do Brasil, enquanto o centro-sul do país se industrializava e se urbanizava de acordo com a concentração das movimentações econômicas e políticas naquela região.
À parte a aula de história e a respeito disso, Antonio Candido, em seu ótimo Literatura e Subdesenvolvimento, sugere que uma literatura nacional pujante se destina a pensar as características não apenas da terra (para muito além das “canções do exílio”), mas ainda da produção material da vida daqueles que vivem nela (seus trabalhadores, os homens e mulheres comuns, em seus trejeitos, comportamentos, gestos, limitações). Muito embora ele reflita a obra dos regionalistas de que falei antes como derivações ou afinamentos do neo-realismo português, a tentativa é válida: criar uma literatura nacional na periferia do capitalismo exigiria pensá-la aceitando as influências externas, porém não se limitando a elas; ter uma alta consciência da literatura como arte, não como documento, nem tampouco afinamento ou imitação. E, creio, a saída para isso seria aceitar que a produção material da vida (da nossa sobrevivência) na periferia do capitalismo reflete nossa conexão, enquanto escritores, com nosso público leitor nordestino e a realidade social de que partimos.
Uma literatura que busque uma “universalidade da região”, como a de Guimarães Rosa nos sertões das Minas Gerais, precisaria dialogar com o espírito de um tempo, mas também de um lugar. Num sentido político isso fica bem claro, certo? Mas, e no sentido estético? É assim que o #LeiaNordeste vem a ser uma luz sobre a literatura nordestina do século XXI, ao fazer com que reflitamos sobre a conexão dos escritores com seu público e, a partir dele, do local de onde sua literatura fala, para quem fala e como se fala. Trata-se, antes de tudo, de superar uma dependência cultural. Neste momento, tomo a liberdade de transcrever uma citação do texto de Candido, no Literatura e Subdesenvolvimento:
Um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores. Isto significa o estabelecimento do que se poderia chamar um pouco mecanicamente de causalidade interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos tomados às outras culturas. No caso brasileiro, os criadores do nosso Modernismo derivam em grande parte das vanguardas européias. Mas os poetas da geração seguinte, nos anos de 1930 e 1940, derivam imediatamente deles - como se dá com o que é fruto de influências em Carlos Drummond de Andrade ou Murilo Mendes. Estes, por sua vez, são inspiradores de João Cabral de Melo Neto, apesar do que este deve, também, primeiro a Paul Valéry, depois aos espanhóis seus contemporâneos. No entanto, estes poetas de alto vôo não influíram fora do seu país, e muito menos nos países de onde nos vêm as sugestões.
Construir a universalidade da região passa, por extensão, por ler nossos clássicos de cada região. Na Paraíba, Anayde Beiriz, Lourdes Ramalho, José Américo de Almeida ou José Lins do Rego. No Pernambuco, Clarice Lispector ou Hermilo Borba Filho. No Ceará, Rachel de Queiroz ou Moreira Campos. Nas Alagoas, Anilda Leão ou Graciliano Ramos. A universalidade da região se alcança, assim, quando dialogamos com as correntes que primeiro pensaram a região a partir da qual escrevemos, para onde falamos (por mais que se alcance níveis nacionais e internacionais), com quem falamos e como, exatamente, falamos. Foi assim com Guimarães Rosa e seu arco de influências modernistas. Alcança-se o universal a partir de um diálogo cotidiano com as dimensões regionais presentes e pretéritas da nossa existência.
Antonio Candido chama a isso de consciência do subdesenvolvimento. Não somos uma Europa transplantada (para tomar um termo de Darcy Ribeiro), nem tampouco um arremedo de Estados Unidos nos trópicos. Tal consciência daria à América Latina uma noção de unidade na diversidade e, neste aspecto, propicia uma integração transnacional quando pensamos que a realidade dos solos pobres e da escassez, do próprio subdesenvolvimento, não é uma realidade somente do Nordeste, mas dos países africanos e também latino-americanos, embora nossa realidade traga suas vozes e também especificidades.
Possivelmente esta consciência do subdesenvolvimento esteja sendo experimentada de forma cada dia mais instigante pelo movimento #LeiaNordeste. Transformar dependência cultural, ou seja, a dependência que temos da literatura europeia ou do centro-sul do Brasil em certa autonomia de espírito e de formato inclui uma reflexão sobre como se constrói essa emancipação. Mais uma vez, para citar Antonio Candido, falando a propósito da influência nítida que Vargas Llosa recebeu de William Faulkner e de Virginia Woolf para trabalhar o chamado monólogo interior em suas narrativas:
Aí, o romancista do país subdesenvolvido recebeu ingredientes que lhe vêm por empréstimo cultural dos países de que costumamos receber as fórmulas literárias. Mas ajustou-as em profundidade ao seu desígnio, para representar problemas do seu próprio país, compondo uma fórmula peculiar: Não há imitação nem reprodução mecânica. Há participação nos recursos que se tornaram bem comum através do estado de dependência, contribuindo para fazer deste uma interdependência.
Vemos que as coisas mudam conforme a abordagem. Se já não se exige a “fala caricatural” do sertanejo para qualificar a obra de Clarice Lispector, os qualificativos urbanos universais reunidos por esta a tornam uma escritora à mancheia tendo passado uma fase da sua vida no Pernambuco. E não se pode negar que a caracterização do subdesenvolvimento em seus romances, especialmente em A Hora da Estrela, nos leva a refletir sobre o lugar de onde se fala, para quem se fala, por que se fala e como se fala. Uma tal literatura universalmente regionalizada supera o mero interesse pelo “exótico” e encarna a condição do universal, do cotidiano e do humano ao retratar, por exemplo, um sertanejo falando sem apelos ao exotismo. Observando-se, portanto, que pela boca de um personagem sertanejo se pode falar uma linguagem do universal, através de suas condições de vida no lugar onde habita. Sob este pretexto, cabe perguntar: até que ponto o escritor e seu narrador se identificam com o lugar de onde falam, sem recorrer a nativismos e bairrismos? Como retratar a região sem soar panfletário e, ao contrário, tentando alcançar a mesma universalidade do regional que Borges, Rulfo, Rosa ou Carpentier, ao falar da Argentina, México, Brasil e Cuba? Como recobrar ao #LeiaNordeste os qualificativos de uma literatura tão brasileira e universal quanto as demais?
O esforço de pensar a literatura em sua consciência do subdesenvolvimento deriva de um esforço de pensar como nos observamos do ponto de vista global. Em outras palavras, como podemos reagir à condição de periferia? A realidade econômica do subdesenvolvimento mantém a dimensão regional como um objeto vivo e ainda necessário? O movimento #LeiaNordeste tem a oportunidade de caminhar por uma estrada que vai além do nativismo, emancipando-se como uma grande proposta de reflexão e crítica de abordagens políticas e estéticas na produção literária brasileira. Falando, portanto, do nordeste brasileiro: temos as condições de recobrar uma consciência do subdesenvolvimento ainda inaudita por outras partes do país? E, recuperando-a, dar a oportunidade de torná-la nacional e universal?
O economista Celso Furtado, nascido há mais de 100 anos, ao publicar o texto Acumulação e criatividade na civilização industrial ainda que de forma subliminar tocou na questão referente à dependência cultural (e aí leia-se literatura) e o modo como organizamos nossa criatividade (leia-se escrita criativa). É conhecida sua entrevista ao Roda Viva, na qual faz menção ao fato de que a cultura, também ela, possui estoques (ou seja, referências, tradições) e fluxos (ou seja, novidades, vanguardas). E que uma depende da outra. Uma possível solução, sugerida por Furtado, é a de que o desenvolvimento seria antes de tudo nossa capacidade de gerar hipóteses, solucionar problemas e enxergar possibilidades mediante a nossa construção de referências culturais e, podemos dizer, também dentro da literatura.
Enxergar as possibilidades de nossa literatura nordestina significa lidar com aquilo que temos de essencialmente criativo mediante o desafio de pensar o novo. Não é novidade: o diálogo para pensar o novo precisaria ser feito segundo nosso próprio cabedal de referências, localizado tanto em nossa região como fora dela. Mas, principalmente, em diálogo com a consciência do subdesenvolvimento. Afinal, qual nosso lugar do ponto de vista global? Se toda a realidade humana é marcada pela onipresença das condições sobre as quais vivemos, as dificuldades, os problemas e também as soluções, intui-se que o movimento #LeiaNordeste joga luzes sobre como pensar nossos personagens, ambientes, situações e vozes como elas são vistas de um ponto de vista global. E, sendo vistas pelo ponto de vista de quem as vive, estas situações caminham junto com uma dificuldade: como tornar universal o que é regional, sem reduzir ao regional o que já era regionalizado como nativismo, exotismo ou preconceito?
Essas questões bailam entre uma “geopolítica da escrita criativa” e uma “economia política da literatura”. De uma forma ou de outra, o modo como José Lins do Rêgo pensou o fim do ciclo da cana, Rachel de Queiroz a falência das obras contra a seca, Graciliano Ramos a ausência do estado na vida do sertanejo, e de que modo esses “estoques”, isto é, referências literárias, servem para a construção da consciência do subdesenvolvimento no #LeiaNordeste são tema da segunda parte deste ensaio.
Sobre o autor
João Matias é escritor, sociólogo e professor. Docente na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou O Lugar dos Dissidentes (2019) pela Editora Escaleras, dentre outros. É um dos editores da Revista Blecaute de Literatura e organizador do Encontro de Literatura Contemporânea, em Campina Grande - PB.