1 de dezembro de 2021

Tire a sua escrita para dançar

Costumo pensar na escrita como um projeto estético: importa o lugar da palavra na folha. Importam as letras minúsculas. Importa o espaçamento (o silêncio da memória) entre as linhas. Importa a pontuação. Um ponto final para quem teve uma vida cheia de vírgulas, importa muito.

Este ano comecei a estudar a escrita de forma mais séria. Li um punhado de livros e participei de algumas oficinas: estive com Marcelino Freire durante cinco meses em um curso da Balada Literária; admirei Andrea del Fuego fazendo bruxaria com as palavras em outubro, e no último mês de novembro frequentei a oficina de escrita da Aline Bei promovida pela Revista Capitolina.

Estas professoras e professores têm em comum uma visão estética sobre a palavra que equipara o ofício da escrita ao da arte visual. O texto não está ali só para ser lido, mas para ser visto, experimentado, degustado.

Quando comecei a pensar na publicação do meu trabalho, me deparei com vários cursos que traziam fórmulas para escrever: a jornada do herói, o apego ferrenho às escaletas e às regras gramaticais ou de pontuação exigentes. Não me encontrava nesse universo (que deixo claro, tem sua importância e pode servir para muita gente). Mas me inquietava ter que entrar em caixinhas para poder colocar minha literatura no mundo.

Em algum momento deste ano, a escritora Tatiana Lazarotto (inclusive recomendo que assinem a newsletter dela) me apresentou esse texto da Zadie Smith* em que a autora divide as pessoas que escrevem em dois grupos: os macroplanejadores e os microgestores.

Os primeiros são aqueles que organizam a narrativa através de notas, estruturas, escaletas, pois essa organização dá uma segurança na hora de escrever. Eu vejo como um colete salva-vidas em alto mar. Os microgestores, por sua vez, não possuem um plano porque possuem apenas o presente para escrever. Constroem linha por linha conforme o devir. É nesta categoria que me incluo.

Gosto de pensar que estou construindo um itinerário. Cada dia estou em um lugar diferente que me apresenta diversas possibilidades. Não há volta atrás porque só é possível caminhar para frente, ainda que de vez em quando, encontre bifurcações pela estrada ou precise parar para recuperar o fôlego.

Não consigo ver a escrita senão como um projeto que também é estético, que comunica pelo olhar, pelo toque, pela cor. Tudo na literatura é sensorial como a madeleine de Proust, tudo evoca uma memória, uma textura.

Mas como disse antes, em novembro estive no curso da Aline Bei, uma autora que tem um projeto estético muito claro e bonito, que escreve com partes do corpo e cria coreografias no texto. Ela propôs um exercício já no primeiro dia de aula:

é manhã bem cedo. uma noiva caminha pela calçada de uma via rápida, ela está com a maquiagem borrada, os cabelos soltos e tem uma carta nas mãos. de repente ela abandona a carta pelo caminho, também os sapatos. Você, mais atrás, recolhe os dois. olha a noiva até a perder de vista

e então abre

a carta,

 o que está escrito?

 

Eu não sei (não gosto?!) escrever cartas. Foi a primeira coisa que pensei.

Mas a provocação me inquietou e fiquei por três semanas remoendo essa imagem da noiva que caminhava sozinha, arrastando esses sapatos e essa carta (que dizia o quê, meu deus?) e só quando experimentei na pele a textura daquele vestido de noiva, o peso dos sapatos, o calor das palavras, consegui experimentar o exercício. Passei dias desenhando meu itinerário para este exercício e saiu o texto que compartilho no final desse artigo.

Tudo isso é pra dizer que quando começamos a perceber nossa escrita com outros sentidos além da visão, podemos vivenciar uma experiência de escrita mais profunda como se estivéssemos pintando a Capela Sistina, desenhando o sorriso da Monalisa ou esculpindo o êxtase da Santa Teresa d’Ávila.

A escrita enquanto projeto estético cria conexões e diálogos. Usar o nosso corpo pode ser bem mais profícuo que olhar para a tela em branco esperando por uma inspiração divina. É necessário buscar movimentos que nos ajudem a iniciar as narrativas a fim de preservar um “estado de escrita” que alimente seu desejo de escrever.

Componha paisagens com os ouvidos, sinta com o nariz, toque com as coxas, use os sentidos de formas outras, feche os olhos: o que você vê? Observe os livros que você anda lendo. Quais deles te despertam sensações? Quais te provocam comichão?

Se sua escrita fosse um desenho, o que ela seria?

 

[compartilho aqui meu exercício para a provocação da Aline e sugiro que vocês leiam ao som desta música aqui: Première Suite - Couperin.]

caminho sobre as poças de água arrastando a barra do vestido. o peso me fazendo derreter. até que eu mesma me liquefaça.

sentir alguma coisa, meu deus, alguma coisa.

 estou oca de algo que não sei nomear.

na via rápida, os carros passam como trovões, mas eu não sinto medo. algo pesa em minhas mãos e me dou conta. ainda carrego. a carta e os sapatos. não sei o que pesa mais. o salto impraticável com detalhes de pérola que combinam com o tom do vestido ou o pedaço de papel-âncora.

 para um instante.

 por que me agarro sempre às coisas erradas?

 ela vai saber em poucos minutos. não há resposta para o inconcebível. larga primeiro os sapatos. abandonados ali parecem esperar uma cinderela. do papel, caem apenas três palavras.

eu.

tentei.

adeus.

 

*SMITH, Zadie. That craft feeling. In: . Changing my mind: occasional essays. Penguin, 2009.