Se Kafka fosse português
Há histórias que, para nascer, pe(r)dem tempo.
Vila Nova de Cerveira é um município português que faz a agradável fronteira com a Espanha, aí representada pela Galícia e pelo adocicado acento galego a descer pelas águas do Rio Minho rumo aos pés de São Sebastião – que descansa e sofre numa capela do século XVII, estrategicamente posicionada de frente para o território espanhol. Lá estive eu, no dia 18 de junho deste custoso 2021, para resolver questões lusófonas que tratarei de comentar em algum momento, talvez aqui, talvez nunca. O centro da cidade tem uma simpatia asturiana e asturianos são também a chuva e o vento que eu senti nessa pequena viagem, enquanto caminhava com a mochila cheia de objetos que não usei: três livros, dois blocos de nota, um computador, muitos cabos eletrônicos, canetas e lápis. Do miradouro da Igreja de São Sebastião, sob as suas quatro ou cinco oliveiras, estive a admirar as vistas para uma Espanha que me sorria verdíssima e viva, que suspirava por mim do outro lado do rio.
Tratados os meus assuntos em Cerveira, almocei num supermercado local, na companhia desses mosquitos lentos e persistentes que anunciam o verão, e resolvi dar uma volta pela cidade. Ainda em função da chuva, desisti do passeio e dirigi-me então à rodoviária, onde – uma hora adiantado – esperei o ônibus da Rede Expressos, esse louvável CNPJ de 53 lugares, Wi-fi ruim (porém grátis) e 6 pneus gastos e perigosos sobre os quais, ao longo dos anos, viajei Portugal de cabo a rabo. O ônibus vinha se aproximando com um atraso de meia hora e eu, que estava bebendo água a 20 metros do local de recolha de passageiros, vi o meu querido transporte chegar a uma distância razoável para alcançá-lo sem o vexame da corrida. Caminhei calmamente, certo de que o infeliz pararia dentro da rodoviária. Ledo engano meu! O motorista, não avistando uma alma que fizesse sinal de parada, simplesmente seguiu viagem diante dos meus olhos, enquanto eu me aproximava do local de recolha ainda a cheirar a fumaça de ônibus já ausente, ainda a não querer acreditar no que via: o motorista não entrara na rodoviária, mas apenas a tangenciara pela rua, como um ônibus comum e ordinário.
Não pude acreditar.
Indignado com aquele Senhor Condutor e com uma sede idiota que aparecera bem naquele momento, comecei a caminhar para a estação de trem, localizada a mais ou menos um quilômetro de distância. Ocorreu-me no caminho qualquer justificativa como “se eu não entrei naquele ônibus, é porque algo mal me esperava nessa viagem”... e outras narrativas metafísicas úteis à sublimação do ódio.
Depois de um dia inteiro resolvendo burocracias e ao perder um ônibus para Coimbra, cidade onde vivi por anos consideráveis, senti-me um verdadeiro personagem kafkiano, enredado nos mistérios da Lei, de seus processos intermináveis, de seus responsáveis inacessíveis. E, de repente, num susto abissal, uma pergunta inusitada estalou em meu peito: se Kafka fosse português, sobre o quê escreveria?
Não há dúvidas de que Portugal daria muito assunto para a vida literária de Franz Kafka. Se ele fosse português, certamente se chamaria Afonso ou Pedro ou Nuno, com um sobrenome imponente como Paredes, Namora, da Gama, Sampaio ou Bragança. Haveria de nascer no Norte, como eu. E haveria de ser austero, eloquente, penetrante e arguto na língua portuguesa, que de belas formas e construções mune os seus falantes – assim diria Camões se estivesse vivo.
Se Kafka fosse português, A metamorfose trataria do caso de um Diogo, um condutor da Linha 28 e que, após mais um dia sofrendo os gracejos dos turistas em Lisboa, de repente amanheceu tranformado em rato – desses asquerosos que há no Rato e noutros bairros da capital. Os pais de Diogo Rato, preocupados com o financiamento na Caixa Geral de Depósitos, certamente o deixariam trancado no quarto, sem entender bem o que se passa, esquecendo-se dele numa lentidão silenciosa e perversa.
Se fosse português, Kafka escreveria O processo com um Tomás S. (de Santos) a acordar pela manhã com a Polícia Judiciária à porta, sem saber o porquê. Após receber mil informações desencontradas, todas vindas de órgãos competentes, e com a culpa que não conseguiu forjar, morreria na prisão à mercê de uma explicação do Primeiro Ministro, isto porque a notícia, também desencontrada, certamente chegaria aos ouvidos da alta cúpula do governo.
Se fosse português, Kafka escreveria um romance sobre um tal Paulo S. (de Silva) que, após 6 anos de residência em terras lusitanas, adquire a nacionalidade portuguesa e, depois de tantos expedientes para o pedido do Cartão de Cidadão, perde o ônibus de volta para a casa porque um motorista atrasado simplesmente preferiu tangenciar por fora o terminal rodoviário de Vila Nova de Cerveira, sem pena de uma alma cansada e espezinhada pela burocracia, sem piedade de uma boca que estaria bebendo água na parte traseira do minúsculo edifício com duas pistas (vazias) para a paragem de CNPJ’s de 53 lugares.
Se Kafka fosse português e escrevesse a minha história, o livro certamente se chamaria Amerika ou, em bom português, O desaparecido – obra inacabada, abandonada pela vida que se apagou, deixada à beira da estrada, à beira do caminho.
Paulo Geovane e Silva nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É escritor, editor, tradutor, crítico literário e professor. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010). É mestre (2012) e doutorando em literaturas africanas de língua portuguesa pela Universidade de Coimbra. Em 2018 estreou na poesia com “caída” (2018, Editora Letramento) e escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil. Radicou-se em Madrid e, atualmente, edita a Revista Ponte.