16 de novembro de 2021

Escrever na máquina de costura

Passo a linha pelo buraco da agulha. Estico-a no comprimento desejado e corto com uma tesoura afiada. Uno as duas pontas e umedeço-as com saliva, dando um nó com a ajuda do polegar e do indicador.

Alinhavo com cuidado o tecido estendido sobre a mesa seguindo o molde previamente cortado. A agulha passeia entre meus dedos longos com destreza. Há uma memória que precede o movimento.

Costurar é como escrever, ou antes, toda escrita é costura.

A gente pega os retalhos das referências, das influências, daquilo que nos inspira. Moldes-vieses-apliques-barbatanas-sobras, repousam sobre a mesa, aguardando o momento de serem usados.

Nós também somos aquilo que lemos e isso me fez pensar nas referências que acumulamos ao longo da vida e que embebemos* nos nossos próprios textos:

ter uma ideia/ meu deus uma ideia.

[…] Saquear todo tipo de texto: verso, propaganda, teoria, música, Wikipédia, manuais. Esquecer as influências. […] Vislumbrar em qualquer material uma outra forma de uso. Ter uma ideia. Tomar para si. Começar o corte. Colocar em teste. Repetir, mais uma vez.

diz Taís Bravo em seu ensaio publicado na Totem-Pagu (O tesão como estratégia de guerra) sobre a poesia de Natasha Félix.

Se eu roubei, então é meu”, afirma Paulo Lins**, autor de Cidade de Deus, que brinca de construir seus textos em cima de narrativas clássicas da literatura brasileira. Referência se torna reverência.

A operação do corte, remendo, combinação de tecidos, texturas e cores fala do próprio de ato de escrever como um lugar de corte. Muitas vezes, a escrita se faz mais da subtração do que da adição. Cortar é preciso. Franzimos o texto pra que ele fale do que nos incomoda:

RV - Achei engraçado uma coisa que li numa entrevista sua. Isso de roubar frases de outros autores e colocar nos seus livros…

TSL - Hoje mesmo roubei uma frase para esse romance que estou terminando (Vista Chinesa). Era uma coisa que eu pensava usar como epígrafe do livro, mas depois achei que não funcionava. Então, peguei a frase e coloquei lá no meio do texto.

RV - E de quem é a frase?

TSL - Não vou falar. (risos)***

Que interessante, eu pensei, esses “roubos literários”, esse saque de ideias e palavras que transformam uma coisa em outra, tomando emprestado palavras alheias, montando vestidos a partir de outras roupas, criando gambiarras.

Gostei disso porque mostra que ineditismo não existe e o que muda mesmo é a forma como a gente produz a narrativa e, talvez, daí venha a tal da originalidade: o vinco que aparece quando a gente descobre o tom do texto.

Qualquer pessoa que coloque a caneta sobre o papel carrega uma infinidade de histórias já contadas, moldes de roupas que recortamos das revistas de moda. O que torna o texto singular é usar essas referências com intenção e consciência, costurando peça por peça com nossas próprias linhas.

Clarice Lispector refletiu sobre isso em uma carta enviada a Lúcio Cardoso, na qual ela conta que encontrou em um livro de Proust (La Poussière) uma frase quase igual a uma que ela usou em O Lustre (Todas as Cartas, Rocco, p. 110) e lembra como é interessante que pessoas possam ter ideias iguais em contextos muito distintos.

Tudo se recria e essa própria ideia já não é original.

O que podemos aproveitar de tudo isso é a troca que se estabelece entre quem escreve e quem lê, tirando o peso de achar que a escrita é algo inalcançável.

 

Notas:

*Embeber no vocabulário da costura significa unir duas partes de tecido que possuem tamanhos distintos, de forma que fiquem com o mesmo tamanho sem franzir ou marcar o tecido.

** Participação de Paulo Lins em uma aula de Marcelino Freire no curso Vivências Literárias em 13/10 no Itaú Social.

** Entrevista concedida pela Tatiana Salem Levy ao Ricardo Viel no livro Sobre a Ficção (São Paulo: Companhia das Letras/ Tag Livros, 2020).