Eu quero ser lida, mas não só depois de morta
Por muito tempo na história ‘‘Anônimo’’ foi uma mulher.
Virgínia Wolf
Macabea precisou morrer pra virar uma estrela.
Quantas mulheres não tiveram que morrer para serem notadas?
Rebecca Solnit começa seu livro A mãe de todas as perguntas (2017) com um ensaio sobre o silêncio. A história do silêncio, ela diz, está ligada diretamente à história das mulheres. Quando estudamos História, essa com h maiúsculo, não é difícil perceber o apagamento das mulheres.
Como ressalta Virginia Woolf em Um teto todo seu (1929), a História faz parecer que os homens nascem com uma capacidade de serem melhores do que as mulheres em tudo. Na cozinha, elas são cozinheiras, eles são chef; na moda, elas são costureiras, eles são estilistas; na escrita eles são universais, elas escrevem “literatura feminina” como se isso fosse algo menor.
Inclusive durante muito tempo, no Ocidente (após o processo de cristianização), não foi dada às mulheres, permissão de escrever obras públicas. Muitas ficavam restritas à escrita epistolar ou religiosa. As místicas do século XII só eram autorizadas a escreverem quando se tratasse de narrar as experiências ou fenômenos religiosos. Muitas doutoras da Igreja como Santa Tereza d’Ávila ou Santa Catarina de Siena só escreviam debaixo do olhar de seus diretores espirituais, daí o termo “confessional” que durante muito tempo se atribuiu à escrita feminina.
Além disso, muitos registros históricos sobre a escrita de mulheres se perderam sob a pecha do anônimo ou dos pseudônimos masculinos, por exemplo, o caso de Mary Ann Evans que durante muito tempo assinou como George Eliot; Charlotte Brontë que assinava como Currer Bell; Karen Blixen como Isak Dinesen e por aí vai.
No século XVIII, Mary Wollstonecraft elaborou um manual bem didático (Reinvindicação dos direitos da mulher, 1792) para explicar aos homens porque era importante que as mulheres tivessem direito à educação. Anos depois, sua filha Mary Shelley publicou a primeira versão de Frankenstein (1818) com o nome do marido e só em 1831 na terceira edição revisada, seu nome figurou como autora.
No Brasil, Julia Lopes de Almeida, uma das idealizadoras da Academia Brasileiras de Letras foi excluída das reuniões da ABL, pois a maioria dos fundadores, sendo homens, decidiram manter a Academia masculina à exemplo da Academia Francesa. O veto só caiu em 1977, com a entrada da escritora cearense Rachel de Queiroz.
Harold Bloom em seu conhecido livro, O cânone ocidental (1994), elenca a literatura que deve ser lida para, segundo ele, entender o zeitgeist do ocidente. São 26 escritores, dos quais apenas três são mulheres: Jane Austen, Emily Dickson e Virginia Woolf.
No cenário educacional brasileiro, no que diz respeito ao ensino de literatura, por exemplo, temos uma lista de autores que são estudados pelos alunos do ensino fundamental e médio, dos quais, 94,8% são homens e apenas 5,2% mulheres, a saber: Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Lygia Fagundes Telles, escritoras fantásticas sem dúvida, mas todas pertencentes a uma classe média, branca e hétero. Ainda que oprimidas pelo fantasma do “anjo do lar” por causa do casamento e da maternidade compulsória, essas mulheres tiveram oportunidade de escrever, serem publicadas e lidas. Tinham “um teto todo seu”, condições para produzir e criar.
E como a exceção só confirma a norma, a gente vê surgir uma Carolina Maria de Jesus vez ou outra, que a despeito de uma existência cujo objetivo primário era sobreviver nos dá a conhecer uma narrativa autêntica e magistral sobre o que é ser uma mulher negra em uma favela no Brasil.
E por falar em Carolina, acho imprescindível, falar que as escritoras negras são muito mais negligenciadas que as escritoras brancas, numa clara intersecção entre o sexismo e o racismo: Conceição Evaristo, Maria Firmino dos Reis, Maya Angelou, Octavia Butler, Toni Morrison, entre tantas, mulheres que até recentemente eram desconhecidas, mas que produziram obras-primas da literatura. Se para ser feminista nós precisamos ser antirracistas, como afirmam bell hooks e Lélia Gonzalez, digo que para falar da literatura produzidas por mulheres nós precisamos ler as autoras negras.
Precisamos também, ler autoras não-heterossexuais, transexuais, indígenas, nordestinas e nortistas. Sair do cânone é a resposta para encontrarmos um mundo repleto de novas experiências, modos de ver e viver o mundo, de sentir e vivenciar a existência.
Eu quero ser lida. E não só depois de morta. Eu também quero ler minhas companheiras contemporâneas e seus livros lindos que estão aí povoando o mundo. Eu quero compartilhar experiências e técnicas, quero estar em suas estantes e tê-las aqui perto de mim.
Ler mulheres é fazer a voz encontrar eco, ler mulheres é lutar contra o silenciamento de nossas histórias.