21 de outubro de 2021

Uma missão científica no rio

Uma mãe acorda mais cedo do que o de costume, sem despertador. Talvez tivesse saído de um sonho intrigante que durou toda a madrugada. Levanta, vagarosamente, para não acordar ninguém. Um silêncio complacente envolvia a casa. No banheiro, lava os olhos com água fria. Ela tinha uma missão. Veste uma roupa simples e confortável, tênis, bolsa, chaves e celular. Saiu de casa de carro, com calma, com um projeto desenhado na mente. Era um dia ensolarado e quente do mês de fevereiro no meio da grande floresta.

O caminho estava tranquilo até a orla, um lugar onde o rio se encontra com a cidade. Talvez por causa do horário, talvez por causa da pandemia. Tradição e cultura representam bem a comunidade que reside ali. Mas, também, miséria e as consequências das enchentes comuns no inverno. Ela estaciona o carro debaixo da única sombra da rua, uma pequena árvore retorcida de folhas verdes e redondas. Não era bem o tipo de árvore esperada na região, mas com o intenso desmatamento e grandes pastagens, a paisagem neste lado da floresta está bem longe daquela dos livros da escola.

Não havia ninguém, nenhum barulho. Ela consulta o noticiário local usando seu celular. Lê que lojas e bares estão fechados, ainda reflexo da pandemia de COVID-19 que assola o mundo desde o ano anterior. Com o celular tira várias fotos. Do rio, das poucas árvores, da paisagem ao seu redor. Há barcos atravessando longe o rio, devagar e em frente. Talvez fosse um bom dia de pesca, mas ela não saberia dizer.

De volta à sua missão, gravar um pequeno vídeo educativo era o plano que se desenhara em sua mente de madrugada. Ela treina um pouco a fala, a mensagem que queria passar para o público. Faz um pequeno teste, uma gravação de dez segundos. Parecia sorrir satisfeita com o resultado.

Grava um novo vídeo, agora de dois minutos. Ela assiste o vídeo e, surpreendentemente, faz uma careta. Repara com atenção a tela, em busca dos defeitos. Talvez fosse o foco, ou o som; deleta. A essa altura, tenha percebido que não é tão fácil como parece. Envolvida em seus pensamentos, ri de si mesma.

Com o rosto assustado e pálido, a mãe se vira lentamente e vê dois homens na rua, a observando insistentemente. Eles conversam e a encaram fazendo gestos indecifráveis. Ela permanece paralisada, gelada, esperando algo acontecer, mesmo sem saber o que. Uma situação incômoda que possivelmente já foi sentida por muitas mulheres. Ela estava com medo, todo o seu corpo e feições diziam isso. Afinal, as estatísticas são desfavoráveis para as mulheres nessa região.

Ouve-se sua respiração profunda e calma, a observar com olhos bem abertos por longos minutos o movimento daqueles estranhos, e apesar de rirem de maneira assustadora não a incomodam. Seguem apressados pela rua, rindo alto, e ainda a encarando. Ora atravessando para seu lado da rua, ora voltando ao sentido oposto. Pareciam brincar com o medo dela.

Suspira aliviada com o desfecho tranquilo. Sozinha novamente, volta-se para a gravação do vídeo. Pelo tempo decorrido, via-se que não tinha experiência em produção de vídeos. Segurando o celular, com o vasto rio ao fundo, escore-lhe uma lágrima entremeio um sorriso leve diante da paisagem. Grava a mensagem.

De volta ao carro, vê um casal de pássaros namorando num galho. Uma cena rara nos dias de hoje. Ela para para admirar a cena, distante, absolvida em seus pensamentos, contempla esta história de amor como uma espectadora silenciosa. Ela desperta com um susto. Olha de ambos os lados. Por segurança, confere se realmente estava sozinha.

A mãe volta para casa pelo mesmo caminho. Vê muitos carros, caminhões e motos, muitas motos. Como têm motos por aqui. O trânsito está mais lento e demorado. Paciência é necessária!

Em casa, depois de banho gelado, senta para editar o vídeo. Ao final do dia, posta a missão científica em suas redes sociais.

 

Ana Cristina Viana Campos. Nascida em 24/03/1982 em Sete Lagoas, Minas Gerais. Bacharel em Odontologia, Mestre e Doutora em Saúde Coletiva. Escreve desde os 13 anos e teve crônicas publicadas no Jornal Estado de Minas, sendo a mais famosa “Vida de estudante”. Atualmente é professora na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Marabá, Pará. É mãe, cientista e poeta com um livro publicado pela Editora Viseu “Uma carta de pai para filha”. Disponível no link: https://www.eviseu.com/pt/livros/1600/uma-carta-de-pai-para-filha/. Trabalha com iniquidades sociais em saúde e publica textos científicos, crônicas e poesias em seu Instagram @aninhavcampos.