Desejo
Para a Ana Elisa Ribeiro
Ler. Ler a galopes, a goles largos de água gelada em janeiro (ou de cachaça depois de um mau desfecho), a tragos de fumador frustrado, como um viciado em abstinência. Ler incessantemente, com a ansiedade de um assassino, com a perícia e o fascínio apressado de um jaguar faminto. Ler na pausa do telejornal, na fila do ônibus, sob o olhar do taxista calado e servil, no banheiro mal iluminado, enquanto dorme o parceiro sem nome, a roncar um orgasmo precipitado. Ler quando tudo se cala, quando não há fala, quando a pausa suspende a urgência. Ler. Ler com medo de perder o que se perde sem tempo para a leitura. Ler como quem descobre que a morte chega amanhã, a cura. Ler com a pressa dos livros publicados a cada minuto, dos que já gritam por nós nas estantes do mundo, dos que ainda pulsam no coração da humanidade, antes da palavra-papel. Ler para ter tempo de ler mais, com avidez, com um nó na garganta, com pena pungente por sermos tão hábeis em escrever e tão lentos para ler. Ler em cada brecha do tempo, da demanda e dos gritos, em cada hiato: enquanto o feijão cozinha, enquanto a luz do sol, sozinha, faz o trabalho de secar tudo o que cabe num varal em dia chuvoso. Ler como quem sente a orfandade das próprias mãos sem um livro, como dedos que choram enquanto não sustentam palavras. Ler com a loucura e o espasmo de um relógio aflito, com o corpo inteiro paginado, encapado, empalavrado, livrado de si mesmo. Ler. Parar e ler. Parar de ler apenas para ler – ou para pensar no que foi lido. Voltar ao livro e ler. Buscar sempre esse caminho, o do livro e de sua forma tão adequada às mãos humanas, o objeto tão propício. Fazer do dia uma rota de trilhas cujo fim único é ler, é estar sentado (ou de pé mesmo), abrir um livro e sumir nele. Criar mil pausas ao longo das horas entorpecidas pela alienação do trabalho e ler com sobriedade. Em casa, decidir um local fixo para ler, não gastar energia pensando onde ler, apenas ler e ruminar o que leu, o que lê. Levar um livro sempre, mesmo sem tempo para o abrir. Ler as incontáveis vozes humanas cujas histórias antecipam o destino e o seu antídoto. Ler muito e bem, para ser um pouco menos cego, um pouco menos mudo, um pouco menos surdo, para ser um pouco mais, para desconfiar da própria percepção. Ler de tudo, tudo-tudo. Ler com o engenho absurdo de quem não sabe mais nada senão ler. Ler como quem ignora a existência, como um milionário sem fome, como aquele poeta desesperado, como um náufrago à beira da morte e cujo respirar possível é o texto de um livro, como uma serpente que apressa o fim da presa e é lenta para comê-la. Ler. Aproveitar um susto para ler, percorrer as linhas de cada página com impaciência resignada e ofegante, abrir um livro e continuar a história saborosa e dolorida, a janela do mundo, a mão que se levanta para derrubar uma parede enorme. Ler sob a euforia e o alívio de um operário às sextas-feiras, como quem habita a inércia dos tempos, como uma criança aflita porque o padre não acaba a missa. Ler. Ler olhando a sinuosidade de cada palavra, de cada serifa, segurando as páginas com a volúpia de uma manhã preguiçosa, com dedos que sustentam chumbo contra a força da gravidade, o volume de papel a carregar vidas inteiras, o espelho. Ler a cada fissura de vida, a cada greta que se abre no duro solo do acaso, a cada flecha lançada ao olho do tempo, a cada adeus ou até logo. Ler com compromisso, ter palavra para com o livro, respeitá-lo, honrar cada página sua. Ler por inércia, fazer dos dois olhos um pêndulo de Newton, um incessante movimento de vai-e-vem-da-leitura, uma ação necessariamente infinita, conduzida pela força constante de si mesma. Ler como quem perdeu o sentido de gravidade: flutuação e desejo.
Paulo Geovane e Silva nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É escritor, editor, crítico literário e professor. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010), onde também lecionou. É mestre (2012) e doutorando em literaturas africanas de língua portuguesa pela Universidade de Coimbra. Em 2018 estreou na poesia com caída (2018, Editora Letramento) e escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil. Radicou-se em Madrid e, atualmente, edita a Revista Ponte.