Carla Guerson atravessa o feminino em “O som do tapa”
Publicada pela editora Patuá, escritora capixaba estreia com coletânea de contos que abordam,
com intimidade e sem romantização, o impacto das mazelas sociais na subjetividade das mulheres
Em "O som do tapa" (Editora Patuá, 2021, 112 pg.), a capixaba Carla Guerson faz a sua estreia colocando a faca na ferida, destrinchando os impactos causados pelos diversos tipos de violência, muitas vezes invisíveis, na subjetividade das mulheres. Ao longo de 28 contos, a escritora aborda temas como solidão, estupro, violência doméstica, perdas, maternidade, relacionamentos abusivos, sobrecarga feminina, conflitos familiares, sexualidade, autoimagem, entre outros assuntos — um verdadeiro apanhado sobre o que é ser mulher na nossa sociedade. A obra conta com apresentação da escritora Aline Bei.
O conto que intitula a coletânea deixa claro o estilo da autora: sua escrita é direta, envolvente, contempla medos e segredos comuns às mulheres. Suas personagens femininas são marcantes e abrangem diferentes faixas etárias e classes sociais, apresentando uma seleção muito rica de tipos femininos, desprovidos de romantização. Carla Guerson também se dedica a captar fatos pequenos, cotidianos, muitas vezes desprezados na literatura padrão, que são recorrentes na vida das mulheres. Em todos os contos, percebe-se uma voz que almeja entender e romper os padrões.
“É um livro sobre mulheres e que traz a violência como tema recorrente (embora não único). Mais do que isso, eu quis retratar como a violência, mesmo que não sentida na pele, nos afeta. Como o som de um tapa: que reverbera e pode ser escutado (e sentido) mesmo por quem não foi pessoalmente atingido. É este som que nós, como mulheres, escutamos todo o tempo. Toda mulher entende sobre violência de gênero e não precisa ter apanhado para isso. Basta existir enquanto mulher na sociedade. Por isso o ‘som’ do tapa e não o tapa em si. Com o desejo de que esse som reverbere nos leitores”, explica Carla.
Para a escritora e poeta mineira Thaís Campolina, trata-se de um livro protagonizado por mulheres desabando, deslocadas no mundo que vivem, fora daquilo que esperavam delas ou de si mesmas. “Mesmo com experiências, idades, situações financeiras e sociais diferentes entre si, as vidas dessas personagens se entrelaçam no livro pelo que elas têm em comum: o impacto na subjetividade que o machismo e outras questões pessoais ou sociais que atingem algumas mulheres específicas podem trazer”, escreve.
“Esses contos parecem carregar - especialmente - a Poesia que há nos desenganos, uma minúscula pérola (ou pétala) dentro de cada ferida”, analisa Aline Bei, na orelha do livro. “Carla tece suas histórias com ternura. Força. Sensibilidade. Parece que estamos abrindo a mala do mundo e o mundo é uma Mulher.”
Um mergulho na psiquê feminina
Diretamente influenciada pela escrita de Elena Ferrante, em “O som do tapa” Carla destrincha as diversas facetas do feminino. A autora explora o universo íntimo e cotidiano das mulheres, perpassando relações familiares e amorosas. Uma grande parte dos contos são narrados em primeira pessoa, o que proporciona ao leitor um mergulho na mente de cada personagem, compreendendo seus pensamentos, dilemas e angústias. “Sou apaixonada pelas pessoas e pelo que elas carregam, os traumas, os medos, as maluquices. Gosto do diferente, do que aquela pessoa tem de especial, de triste, de nojento. O que sai do padrão, o que está oculto, o que não pode ser dito, tudo isso me interessa”, destaca Carla.
“Ser impactante é um efeito que revela o quanto essa leitura é necessária. Ficamos chocadas porque nos reconhecemos em cada conto em trechos que contemplam os nossos maiores medos – como estupro, violência doméstica, perda das pessoas que amamos e incompreensão da família -, segredos íntimos – maternidade não romantizada, o sexo (que tantas vezes nos é revelado como algo errado) – e, ainda, a distância que estamos dos padrões que nos querem forçar a seguir – aqui entra a rotina sufocante das mulheres com os seus acúmulos de tarefas (distante da ideia de que somos aptas a dar conta de tudo) e as questões de corpo”, analisa Michele Fernandes, escritora e crítica literária.
Ler e escrever sobre mulheres: uma forma de resistência
Feminista e estudiosa do feminino, Carla se dedica a ler e divulgar obras literárias escritas por mulheres desde 2016. Nascida em Vitória (ES), onde reside, escreve contos, crônicas e poemas e tem textos publicados em diversas revistas literárias, coletâneas e antologias. “Todos os contos levam algo de mim. Mesmo os que não tem nada de autobiográfico, são escritos a partir da minha percepção, do que eu vejo, do que eu sinto, de como eu me colocaria naquela situação. Eu gosto de tentar me colocar no lugar do personagem, de viver na sua pele. Os leitores apontam que enxergam uma narrativa íntima, quase pessoal. Escrevo a partir do que eu vivo e muitas histórias são inspiradas em coisas que ouvi ou vivenciei com amigas, conhecidas e parentes”, conta.
Carla Guerson frisa a influência direta de escritoras mulheres, desde as clássicas, como as irmãs Brönte, até as contemporâneas. “Começar a ler mais mulheres foi essencial na busca pela minha voz literária. Elena Ferrante é uma grande referência para mim, com ela aprendi que é possível ser profunda, leve, fácil e complexa ao mesmo tempo. Dentre as brasileiras contemporâneas, destaco a Aline Bei, que foi minha professora, mentora e que escreve com uma entrega completa, tem um talento incrível para tocar o leitor”, elenca.
A escritora também cita nomes como Conceição Evaristo, Carola Saavedra, Carla Madeira, Renata Belmonte, Veronica Stigger, Nara Vidal, Maria Valéria Rezende e Eliana Alves Cruz como suas inspirações. “O conto ‘Dormente’, por exemplo, foi escrito após concluir a leitura da obra ‘Com armas sonolentas’ da Carola Saavedra. Uma das frases ficou ressoando em mim até que consegui elaborá-la por meio da escrita”.