A escrita como espanto – sobre processos
Tenho poucas fotos de quando era criança. Em uma delas, estou apoiada sobre uma almofada azul numa cadeira de metal que parece ser extremamente desconfortável para uma bebê. Devia ter poucas semanas de nascida, pois do umbigo ainda pendia o esparadrapo que indicava um laço rompido.
A bebê que eu fui tem a mão direita apoiada no queixo, a boquinha em formato de o, semiaberta, e os olhos bem arregalados, elevados para algo ou alguém fora do enquadramento do fotografo. É um retrato do espanto. Costumava brincar que aquela bebê olhava aterrada para o futuro, antevendo os enormes desafios que iria enfrentar.
Hoje, quando me coloco diante da folha em branco, sinto esboçar em meu rosto a mesma feição. Busco as possibilidades daquela página onde nada ainda foi escrito. Mais do que uma ausência, o espaço em branco anuncia um horizonte de possibilidades.
É certo que nem sempre esse horizonte é uma linha contínua. Para mim, parece bem mais com uma espiral. Algumas escritoras e escritores funcionam com fórmulas de jornada do herói, esquemas de construção de personagem, escaletas, mas eu não consigo usar nada disso.
Também não consigo estabelecer metas de escrita: “escrever tantas páginas ou caracteres” ou “escrever todos os dias pela manhã”. Teve um período que isso me incomodava. Queria ter um horário certo para escrever, queria ser mais disciplinada. Me forçava e no final não saía muita coisa. Faltava o imprevisível.
Com o tempo, acabei entendendo que a escrita, no meu caso, se relaciona muito ao bem-estar, a não-cobrança. Meu sol em Aquário me diz que não adianta eu forçar quando não estou bem, e, principalmente, não funciono com regras e limites. Minha escrita tem que ser prazerosa, ainda que os temas não o sejam.
Os momentos de hiato, em que não consigo escrever, podem ser bem inquietantes. Tento ler, assisto séries ou filmes, jogo vídeo game, brinco com meus gatos. Para uma escritora, escrever pode ser muitas coisas, inclusive, matar zumbis em algum jogo online.
Quando decido me aproximar da tela em branco, arrumo a mesa do escritório, acendo um incenso, coloco um ruído branco e deixo fluir. Permito me fascinar com as possibilidades do texto, me maravilho com as palavras novas que surgem no contato com o dicionário de sinônimos. Outro dia, passei horas seduzida pela palavra acachapante e me desafiei a usá-la em um conto. Acachapante é algo esmagador-irrefutável-indiscutível, assim como o espanto.
Processos de escrita são únicos e subjetivos (mesmo para quem usa fórmulas) e talvez, nós devêssemos confiar mais naquilo que não podemos ver, naquilo que precede o ato de escrever em si. Confiar na possibilidade do mistério. Quando eu duvido da minha capacidade criativa, busco a foto da menina espantada com algo que estava ao alcance do seu olhar. O texto está ali, só preciso encontrar uma forma de vê-lo.