A engenharia da morte, de Mélio Tinga
O conto é um gênero literário potente. Apesar de sua concisão e brevidade, pode conter desde uma mera estrela a uma gálaxia inteira, recortar um instante ou acenar para toda existência. No mais, pode tomar diversas formas e borrar as linhas rígidas (ou não tão rígidas) que o separa e distingue da crônica e da poesia. Em A engenharia da Morte (Caos & Letras, 2021), do premiado escritor moçambicano Mélio Tinga, encontramos essa travessia pelo conto, que ora adquire formas poéticas, ora lembram crônicas; entregam universos ou limitam-se a pequenos astros; revela paisagens ou apenas um ponto fixo no horizonte.
Tinga equilibra referências implícitas e explícitas, como uma certa densidade e introspecção vistas em Saramago, a poética e melancolia de Milan Kundera, o deslocamento e non sense de Haruki Murakami e a beleza do olhar introspectivo, local e universal de Suleiman Cassamo, quem faz da aldeia o mundo e do mundo a aldeia. Essas referências externas e internas, européiais e africanas se fundem para tecer com beleza e destreza as tramas que se revelam página a página.
Em contos curtos, ora mais duros, ora mais poéticos, quase etéreos, relata as banalidades do cotidiano burilando-as com a singularidade e grandeza de quando o banal se torna pessoal. Paixões, perdas, perigos, medos, a finitude de si e das coisas somam-se para compor a densidade e complexidade da existência humana, indo da doçura à indiferença, o que pode produzir tons cruéis ou cínicos.
O livro divide-se em três partes. A primeira e mais longa, Dentro do corpo, reúne contos que se volta para as relações que de tão cotidianas podem passar despercebidas e banais. Os dois primeiros contos (Corpo Imóvel e Tempos de Cólera) guardam um lirismo mesmo nas suas sentenças curtas, duras e entrecortadas, quase como a revelar, com algum distanciamento, o que se propõe a contar. Os debochados O cão que falava irlandês e O assalto à casa do presidente ou a onda empolada são os destaques dessa primeira parte, brincam com o colonialismo, caso do primeiro conto, e do processo de criação e escrita, caso do segundo, que me remeteu bastante ao Haruki Murakami contista. Os demais contos narram sobre paixões, refletem sobre a morte (como o delicado Desapareceu) e a própria condição humana (como em A máquina do chinês).
A segunda parte, Inverno, composta por apenas três contos: Os vagões da morte, Enterrado vivo e Escombros. Os três partilham, mais que a morte, de uma certa condição de desolação diante do fim, uma expectativa que se espalha pelo movimento de um trem, pela claustrofobia de irromper das rofundezas para a superfície ou do vazio indiferente da existência. Por sua vez, a terceira e última parte, composta de quatro contos, A língua dos sonhos, para além da refrência ao onírico, alinha-se por adotar uma forma fragmentária, quase displicente da passagem da vida.
A engenharia da morte carrega um sentimento de melancolia, de observação cínica, quase desiludida da existência em si, dentro de si e em derredor. Os contos flertam de maneira inusitada com o poético, soa em muitos momentos com uma forma contida, quase encabulada, de escrita, que teme revelar, mas também não se contém calada. Esse jogo de esconde e revela, revela e esconde, imprime tensão e ritmo e mantém o leitor interessado. Não diria que é desses livros para ler num só fôlego, mas daqueles para se apreciar com a passagem dos dias.
Em sua estrutura, linhas e caminhos revela o fluxo inevitável do tempo, que chega e não espera, um trem com pressa em chegar ao destino, ao inevitável fim de todos, quando se deixará para trás apenas a paisagem, os sentimentos que se repetem em novos corpos, vidas, mundos e sonhos.
Uma estreia promissora de um escritor que mostra habilidade para recortar universos com singularidade, olhar aguçado e sensível à violência física e/ou simbólica que permeia a passagem árida dos dias a nos conduzir ao inevitável destino de tudo e todos.