As aventuras da China Iron, de Gabriela Cabezón Cámara
Olhar curioso, observador, inteligente, desbravador. Assim é China Iron
O que a autora, Gabriela Cabezón Cámara, faz em As aventuras de China Iron é algo muito especial. China é uma personagem que não tem relevância na obra de José Hernández, publicada pela primeira vez em 1872 sob o título - El gaucho Martín Fierro. Esta obra, inclusive, é conhecida como aquela que deu o tom e construiu o “mito do gaúcho”, a partir das imagens e narrativas que se formaram em torno do mito de Martín Fierro. A referida obra, narrada em versos, fundou o estilo gauchesco que atravessa o norte da Argentina, o Uruguai e o sul do Brasil. China, portanto, aparece nessa história muito pouco e como uma personagem secundária e sem brilho.
Ler China Iron sem ler Martín Fierro não foi uma dificuldade.
Não conhecia a história de Fierro e muito menos tenho aproximação com essa questão do mito do gaúcho. Entretanto, a autora consegue inserir em seu livro fatos sobre Martín Fierro que contextualizam o que precisamos saber e nos situam. Mas, lembre-se, ele não é o foco nesta narrativa.
Em dado momento, China foge de uma vida sofrida ao lado de Martín Fierro (daí o Iron no nome dela, numa das muitas ironias em relação à colonização e ao uso do inglês como língua principal). Nesta fuga, China e seu cachorro Estreya, se encontram com Liz e sua carroça e, juntes, seguem terra adentro. No caminho, junta-se a elas, Rosário. Gaúcho exilado e que vive nos pampas pastoreando gado.
Esse é um caminho de encontros e libertação. China Iron nos leva a lançar mão da imaginação, da poesia, do brilho que é descobrir-se e entregar-se às experiências da vida - “para poder ir embora, é preciso tornar-se outro”. E nesse vir a ser os horizontes das personagens se expandem. Amplificam-se possibilidades de cuidados e afetos. De horizontes reais e aqueles que estão em nossos mais íntimos ideais. Expandem-se conceitos sociais e sexuais. E a descoberta se faz no caminho e este caminho leva nossa personagem ao mais profundo início de tudo. Um início onde os povos indígenas eram senhores da terra. E onde as relações sociais e sexuais se davam pela livre organização e desejos mútuos.
Gabriela consegue colocar nesse livro lindo, sem em momento algum ser direta, toda uma crítica ao processo de colonização. Não apenas a colonização dos espaços geográficos, que modificam cartografias. Mas a colonização das línguas, costumes, corpos e prazeres daqueles que são colonizados. Fazendo o livro crescer a cada página à medida que China cresce também.
por Juliana