Uma das Coisas, de Débora Gil Pantaleão
A paraibana Débora Gil Pantaleão é poeta, contista, editora e faz sua estreia no romance com Uma das Coisas (Escaleras, 2020), que percorre três gerações de uma mesma família, reconstruindo o passado de Vovó Lelé, de Mamãe Patrícia e o presente da neta/filha adolescente. Um romance de trajetórias femininas, marcado pela adversidade e superação de cada tempo e geração.
Começa com Vovó Lelé e sua infância pobre e difícil na pequena Ibiara, no interior da Paraíba. Sua vontade de aprender a ler, de ser gente, a leva a uma dessas falsas adoções, sob o argumento da caridade e para livrá-la da fome, porém esconde uma rotina de violência e trabalho análogo à condição de escravo. Para escapar de da violência acaba por cair na violência de um marido, do cativeiro da "madrinha" a prisão de um casamento igualmente habitado por humilhações e agressões. Em seguida, passa a Mamãe Patrícia e o desafio de ser mãe solo e, então, pela descoberta da sexualidade e a busca por sua origem feita pela filha adolescente.
O ser mulher em diferentes gerações e o quanto uma tem a dizer a outra, o quanto a voz de uma tem o custo do silêncio da outra e o quanto o lugar de uma deve a resiliência e teimosia da outra. Assim, revela retratos de gerações de mulheres, ora divergindo, ora convergindo, para a construção plural e, ao mesmo tempo, singular desse lugar de ser mulher e nordestina.
O fio que amarra, alinhava, costura essas trajetórias jaz numa tarefa escolar que exige a confecção de um romance. Vovó Lelé conta com a leveza das mulheres que sabem de si a gravidade de uma vida de lutas, conflitos e inistência. Sem dúvida, a personagem mais forte e interessante do romance, e que faz gravitar em torno de si as demais.
Débora, cuja prosa sempre foi marcada pela necessidade de experimentar novas formas de narrativa, emprega para cada relato uma forma distinta. Busca com Vovó Lelé a oralidade, marcada pelo sotaque, cadência e o registro em minúsculas, intercalando com capítulos mais tradicionais.
O cenário vai desde a pequena Ibiara, passando por João Pessoa e Baía da Traição, siuada no litoral norte da Paraíba e povoada por indíngenas potiguaras (aliás, há ali elementos interessantes para desenvolver novas narrativas). As personagens conseguem transitar de modo fluído por diferentes cenários, produzindo um mosaico interessante dos fluxos e deslocamentos entre interior e capital, em particular, pelos estudantes que seguem para João Pessoa para dar seguimeno a seus estudos ou em busca de melhores condições de vida. Nesse aspecto, o romance é bem feliz, pois consegue estabelecer uma reconstrução de um Brasil recente, que testemunhou a ascenção dos socialmente vulneráveis.
Existem algumas personagens, algumas tramas interessantes, mas que terminam por não serem desenvolvidas, acenam para expansão de um universo particular e de um Brasil mais feliz que o atual, quando a diversidade era celebrada num toré na aldeia São Francisco, em Baía da Traição, ou numa ciranda na UFPB, onde mãos de gerações diferentes se unem, vozes se alinham em uníssono para celebrar não o fim da jornada, mas a certeza de não seguem sozinhas.