Julián é uma sereia
Julián é um menino que, retornando da natação com sua avó, vê três mulheres vestidas de sereias e fica encantado. Ali mesmo, no metrô, ele imagina a água tomando conta do lugar, com seu cabelo alongado, flutuando na água e tendo suas pernas substituídas por uma cauda enquanto se vê rodeado de vários peixes, polvos e águas-vivas. Como quem diz que o céu é azul, Julián diz para a avó que é uma sereia, e enquanto a idosa toma banho, ele se apropria de peças pela casa para se transformar.
Dando vida ao texto, as ilustrações de Jessica Love, em aquarela e guache, possuem uma fluidez que nos remete à água e aos movimentos dos animais aquáticos, seja nos cabelos de Julián, que crescem embaixo d’água, na cortina da sala que voa com o vento que entra pela janela, ou nas fantasias esvoaçantes que aparecem nas últimas páginas do livro.
Em Julián é uma sereia, as ilustrações revelam muito além do que o pouco texto presente em cada página. Como quando a avó de Julián volta do banho e encontra o neto com plantas e flores na cabeça, como uma peruca, e a cortina da sala amarrada na cintura imitando uma cauda. O menino confiante que parece olhar o leitor nos olhos e convidá-lo para uma traquinagem, mantém o queixo erguido enquanto monta sua roupa e passa batom, desaparece ao dar de cara com a avó. Os ombros caem, a postura é acanhada, como quem espera ser repreendido por ter sido pego fazendo algo errado, enquanto o texto na página nos entrega somente “Hum...”, exclamado pela avó que sai de cena e deixa Julián se examinando apreensivo no virar da página.
Mas então ela retorna, dessa vez com um colar de pérolas que ela oferece ao neto.
“ – É pra mim, vó?
– Pra você, Julián.”
E convida o neto para o local onde as sereias estão a desfilar:
“ – Iguaizinhas a você, Julián. Vamos com elas.
E foram!”
Me emocionei demais a primeira vez que li o livro, sempre me emociono com qualquer cena simples de aceitação. Foi assim assistindo A garota dinamarquesa, quando Einar diz ao médico que acredita ser uma mulher, e Gerda, sua esposa, diz pensar o mesmo, enquanto segura sua mão. Essa frase curtíssima me fez chorar de soluçar, e a emoção foi a mesma vendo a avó de Julián na obra de Jessica Love.
Em seu site, a autora responde duas perguntas que diz serem frequentes em qualquer entrevista da qual ela participe. A primeira é por qual razão ela decidiu escrever a história de Julián. Ela então detalha um momento de sua vida em que ouviu adultos se questionando sobre como contariam sobre uma pessoa trans às crianças da família, e isso a fez pensar sobre o que existia na literatura que abordasse o tema do ponto de vista de uma criança ao invés de se contar a elas.
“Eu queria fazer uma história sobre o momento em que uma criança revela algo essencial sobre quem ela é e é reconhecida com amor. É uma história sobre pertencimento.”
Quanto à segunda pergunta, ela responde sobre o fato de ser uma mulher branca cis escrevendo sobre uma família afro-latina e uma criança trans. Jessica compartilha que passou seis anos, o tempo que demorou para concluir o livro, se fazendo infinitas perguntas. Se as pessoas que poderiam se reconhecer no livro se sentiriam traídas por ela estar contando uma história que não pertencia a ela; se isso seria apropriação cultural; se ela acabaria deixando passar algum estereótipo por não ser a vivência dela... por fim, ela decide por escrever e pesquisar o máximo possível, lendo, conversando com outras pessoas, como forma de tornar a história de Julián a mais sincera possível e sem nenhuma ilusão que seu privilégio branco e hétero pudesse a prevenir de enxergar em sua escrita. A autora diz que, embora o background dos personagens fosse diferente do seu, no final das contas, a história era sobre o desejo de ser visto, compreendido, e isso era algo que ela sentia.
Julián é uma sereia poderia facilmente ser mais um clichê sobre aceitarmos o “diferente” (e o que é ser “normal, não é mesmo?) um sermão ilustrado. Mas como lemos na quarta capa: é uma celebração do respeito e do amor incondicional.
Site da autora