Morcego Cego
O romance Morcego Cego, do pernambucano Gilvan Lemos (1928-2015), acaba de ganhar um nova edição pela Cepe Editora (a primeiro é de 1998 pela Record), dentro do projeto de relançamento da obra do autor. Considerado como seu romance mais complexo, Lemos recorre à técnica do fluxo de consciência para contar a história de Juliano, um homem ambicioso e atormentado pelos segredos que envolve a sua origem.
O pouco que conhece são fragmentos ditos pela beata Noca e por seu irmão castigado pela loucura ou, como diz, pelo espiritismo moderno. Noca jurou nunca revelar o que sabe, sendo sabido apenas o lugar de seu nascimento, o palacete do dr. Bacelar, e a notícia da morte de sua mãe ao lhe dar à luz.
A beata vive com o irmão amalucado, o Velho Nei, e quer pela pobreza, quer por outros tormentos, resolve entregar o menino aos cuidados de Luíza, uma prostituta aposentada e alcoólatra, e ao seu marido João, castigado pela filariose. Nesse ambiente desestruturado o menino vai crescendo em ambição, pequenos delitos e tragédias.
Juliano faz do ódio a sua força, e dele retira a paciência necessária para suportar as mais sutis e as mais explícitas humilhações. Além disso, fornece a frieza necessária para execução de cada passo em direção ao seu sucesso. Mas em Olímpia encontra amor e luxúria, na colisão entre seus mundos distintos, na convergência de seus corpos e desejos, bem como a abertura para que adentro do mundo da riqueza.
O fascínio do Dr. Bacelar pelo rapaz também é um ponto intrigante do romance, um relação dúbia, cheia de segredos, que incomoda os interesseiros Alvim, esposo de Olímpia, e o Dr. Lopes, advogado do velho. Juliano, desconfiando que o velho seja seu pai, e o velho usando do vigor e virilidade do corpo do rapaz para satisfazer a lascívia do seu em fogo morto. Há uma aproximação e um distanciamento: dum lado, gestos de aproximação, estima e confiança; doutro, frieza e desconfiança.
Aos poucos compreendemos a Juliano, desfazendo os mal entendidos a seu respeito, a sua quase selvageria, a irritação constante, a ferocidade de seus modos, a agressiva de seu desejo e a necessidade de ferir. Não se trata de incapacidade para amar, mas de desconhecimento. Não se trata de falta de educação, mas de desprezo. É ferro ferindo ferro, um revide a tudo que sempre lhe pôs à margem, um grito do casebre decadente, fedendo a álcool, sexo e doença em que cresceu contra o palacete que a todos sustenta com boa vida. Juliano não ascende por mera ambição, mas por alguma sorte de vingança contra o destino que imagina ter-lhe sido negado. Um revide ao lugar que lhe imposto entre os maus e os desprezados e os que nunca serão aceitos.
"Para que Deus quereria uma alma pura? Para conservá-la a seu lado direito? E para que isso? Se assim o deseja, por que não a faz logo pura? Não me arrependo de nada do que fiz, não me arrependerei de nada do que eu fizer. Se esse Deus, que tudo faz, da maneira que eu sou me fez, estou simplesmente realizando o que espera de mim. Não me fez mau? Pois me aguente. Tem mais aquela história do livre-arbítrio, sei lá. Como eu entendo, seria lícito o livre-arbítrio se todos os homens nascessem iguais, com as mesmas possibilidades quanto á inteligência, à saúde do corpo, às condições financeiras. Assim, sim. O cara que se desgarrasse é porque não prestava mesmo, então mereceria o inferno." (p. 102)
Essa distinção lhe persegue no ódio devoto da alta sociedade, que se arvora superior em suas rezas e mesuras e maneiras polidas e sórdidas de fazer o mal e alcançar o que deseja, seja nas tramas criminosas de Alvim, na relação estranha com o Dr. Bacelar ou na bondade velada e subserviente do Dr. Lopes. Atento ao lugar de onde veio e ao que ocupa, Juliano adverte a Reginaldo, o garoto que apanhou na rua para ser seu filho:
"Você veio da classe baixa, feito eu. Por pior que a pessoa de nossa classe procure ser, jamais se igualará a esses santinhos civilizados. Nós somos grosseiros, não sabemos esconder o mal que praticamos. eles não. Eles têm finesse, experiência secular. Passam a perna nos bestas e ficam como bonzinhos. Os criminosos somos nós, eles são os salvadores da civilização cristã." (p. 156)
Assim, resta-lhe abraçar a maldade como meio de vida e aproveitar o que de melhor se pode obter:
"Quanto pior a gente seja mais a vida goza, a vida é gozada na base da maldade. A vida é para ser gozada, não para ser guardada numa caixa de aço feito segredo mortal." (p. 144).
Mesmo diante das verdades que lhe são reveladas, não cabe ou se oferece a Juliano a chance de remissão. Não se curvaria ante ao amor, à bondade ou à justiça.
O romance está estruturado em capítulos marcados pelas letras A, B e C, remontando, respectivamente, ao passado em casa da bêbada e o da perna inchada, a quem foi dado para ser criado; a seus dias de empregado no palacete do Dr. Barcelar, e; ao seu presente como senhor e dono do mesmo palacete. Não há linearidade, mas um fluxo contínuo, indo do ponto A ao B ou ao C ou do B ao A ou ao C. Assim, somos levados pelo narrador a construir os próprios fragmentos de seu passado e presente, compreendendo suas escolhas e tudo sem o menor apelo à empatia ou menção a absolvição.
Se a escrita de Gilvan Lemos me surpreendeu em Emissários do diabo (Cepe, 2013), aqui é ainda mais elaborada e densa. Constrói personagens interessantes, surpreende pelas tramas que tece, remetendo a temas universais e abraçados com desenvoltura em sua narrativa: luxúria, voyeurismo, traição, miséria, conflito de classe, incesto, ambição. Tudo posto à serviço do romance, sem descambar em lugares comuns, apelar a qualquer sorte de moralidade ou condenação. Temos um escritor fiel às suas personagens e comprometido com a história que contam. A mim, Gilvan Lemos segue surpreendendo e atiçando o desejo de conhecer mais e mais a literatura que nos legou.