Sol das Almas
Sol das Almas é o segundo romance do escritor, dramaturgo, professor e pesquisador pernambucano Hermilo Borba Filho (191-1976), originalmente lançado em 1964, relançado pela CEPE, em 2018. Porém, antes e tratar do romance, gostaria de apresentar um pouco da biografia e bibliografia obra do autor, frequentemente associado ao escritor Ariano Suassuna, com quem fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), em 1946, quando estudantes na Faculdade de Direito do Recife, e anos mais tarde, após um período no teatro paulistano, o Teatro Popular do Nordeste (TPN), vindo apenas dois anos mais tarde, em 1960, fundado o Teatro de Arena do Recife, junto a Valdemar de Oliveira.
Aliás, a sua relevante contribuição ao teatro nacional é amplamente conhecida, dada a sua atuação como adaptador, escritor, diretor e montador, tendo nos legado 23 peças de sua autoria, sendo apenas sete publicadas ainda em vida, com encenações no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Portugal, Suíça, Holanda, Alemanha, Noruega e Finlândia. Além de montagens e/ou traduções de relevantes dramaturgos mundiais (Henrik Ibsen, Oscar Wilde, Gogol, Leon Tostoi, Tchecov, Eugène Brieux, Somerseth Maugham, Ramon Sender, Federico Garcia Lorca, Calderón de La Barca, Alexandre Dumas Filho).
No âmbito da literatura, além de ensaios/estudos, publicou sete romances (Os caminhos da solidão, publicado pela José Olympio Editora, em 1957; Sol das almas, pela Civilização Brasileira, em 1964 e relançado pela CEPE, em 2018; Margem das Lembranças: Um Cavalheiro da Segunda Decadência, Volume I, pela Civilização Brasileira, em 1966; A porteira do mundo: Um Cavalheiro da Segunda Decadência, Volume II, pela Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, em 1967; O cavalo da noite: Um Cavalheiro da Segunda Decadência, Volume III, pela Civilização Brasileira, em 1968; Deus no pasto: Um Cavalheiro da Segunda Decadência, Volume IV, pela Civilização Brasileira, em 1972, e; AGÁ, com Ilustrações/quadrinhos de José Cláudio, pela Civilização Brasileira, em 1974), três livros de contos (O general está pintado, Sete dias a cavalo, As meninas do sobrado, todos pela Editora Globo, respectivamente em 1973, 1975 e 1976. Relançados pela CEPE em volume único), duas novelas (Histórias de um tatuetê, lançada pelo O Gráfico Amador, em 1968; Ambulantes de Deus, pela Civilização Brasileira, em 1976 e relançada pela CEPE, em 2017) e uma biografia (Henry Muller: vida e obra, publicada pela José Álvaro Editor, em 1968).
Sol das Almas, estruturado em 19 capítulos (cada uma das estações de trem entre Palmares e Recife), vai revelando detalhes dos tormento do pastor Jó, protagonista e narrador. Ambientado em Palmares, cidade da zona da mata pernambucana, narra as desventuras do pastor e sua luta contra o pecado do luxúria e o sexo. somos apresentados a vida de dias pacatos e noites ardentes ao lado da esposa Estela, tudo após a descoberta de um livro achado num sebo do Recife. Assomado pela culpa e dividido entre ser um homem comum e um homem de Deus, Jó se vê em meio a flagelos físicos e morais, estes encarnados na figura de um morcego a afrontá-lo (Seria uma referência ao poema de Augusto dos Anjos?).
O percurso interior, marcado pelo conflito e luta excruciante de Jó, é posto em contraste com a vida da pequena cidade: a avareza de um dono de engenho decadente, a fidelidade de Totô, o vício em morfina de um médico e a beleza de sua esposa húngara, os mexericos de um funcionário público, uma amizade de gamão e conselhos com o padre Alípio, um charlatão e suas curas milagrosas. Esse mosaico de vida, cores, crenças e decadência forma um retrato por vezes rancoroso, apesar de sincero, da cidade e cenário de aflição, julgamento e condenação do pastor Jó. Contudo, o modo como certos personagens soam comuns (e próximos a mim por minhas origens) acentuam a profundidade e complexidade do protagonista. Eles não são postos de modo aleatório, mas em relação e a favor do protagonista e trama. Nada é gratuito ou excessivo, mas cada pequeno detalhe, diálogo, aparição coopera para a totalidade do romance.
Em cada detalhe, Hermilo prova-se um mestre: o texto enxuto, a condução e cadência que imprime à narrativa, não apenas no uso das estações para passar a limpo, em curtos intervalos de tempo, aspectos da trama que conduz Jó ao Recife, mas também para revelar uma Zona da Mata em flagrante decadência dos engenhos e a saída para a capital, os diálogos ritmados e convincentes. No mais, demonstra profundo conhecimento e habilidade para tornar o seu protagonista, pastor evangélico, em pessoa real e não numa caricatura.
Se me arrisco a apontar um tema ao romance, capaz de lhe conferir unidade, diria que é a decadência e todo o tormento que produz, seja o dos engenhos de fogo morto ou lutando para não sucumbir ou no médico consumido pelo vício em morfina ou no casamento abalado pelo sexo visto como pecaminoso ou na decadência moral das pequenas vidas mergulhadas na fofoca ou na hipocrisia. Como lhe confidencia o fiel Totô: "Esta vida é uma bosta".
Hermilo Borba Filho, bem como outros nomes de sua geração, merece ser (re)descoberto pelo leitor brasileiro. Um escritor habilidoso à altura de seus célebres amigos, Ariano Suassuna, Osman Lins (cujo volume de correspondências foi lançado pela CEPE, em 2019) e Érico Veríssimo. Baita romance.