30 de julho de 2021

It, o subsolo da realidade humana

Escrito por Stephen King, It, a coisa é o 22º livro do autor e possui nada mais nada menos que 1102 páginas. Esse calhamaço foi produzido pelo King em uma época muito turbulenta de sua vida, na qual drogas e álcool eram as suas principais refeições durante quase 8 anos (1978 e 1986). Apesar de muito provavelmente não ter tido muita qualidade de vida durante esse período, King produziu mais de 6 livros, sendo alguns deles considerados obras primas, por mim é claro, e para muitos de seus leitores, que são:  “It, a coisa”, “Misery” e os primeiros volumes de “A Torre Negra”.  O mais interessante/bizarro é que o autor sempre comenta em suas entrevistas que não lembra de ter escrito tudo o que escreveu nessa fase.

Sobre It, a narrativa vai nos contar a história de 7 amigos, Bill, Eddie, Richie, Ben, Bervely, Stanley e Mike, que juntos, lutam para derrotar uma criatura maligna que aparece na cidade de Derry, no Maine, a cada 25/27 anos. Essa criatura sem uma forma exata, se alimenta de crianças e não somente as pequenas indefesas, mas também as crianças que estão na transição de ser jovens, e sinceramente? Com o passar da leitura você vai ver que não somente as crianças, mas qualquer pessoa se torna para ela um alvo. Tudo vai depender da fome, do interesse e da vontade de matar.

O livro vai oscilar entre 1985 quando os amigos estão na fase adulta, e entre 1958 quando todos eles se conheceram e se tornaram para sempre “o clube dos otários”. E não pense que nós, leitores, cairemos de paraquedas em uma história aparentemente toda pré-montada, o narrador que costura a história é um dos amigos, e tudo começa em 1985, quando ele decide que é hora de ir atrás de cada membro do clube para que eles cumpram a promessa que fizeram em 1958: se a coisa voltar para Derry, nós vamos detê-la juntos. O problema é que ao entrar em contato com eles 27 anos depois, ninguém mais lembrava de Derry, nem do acontecido, eles só lembraram da promessa, e essa lembrança foi como sofrer um atropelamento. Como eu disse, a história não é pré-montada, e nós vamos descobri-las juntos com os otários, que cada vez que chegam mais perto de Derry vão lembrando da sua infância, das aventuras, dos amigos e dos detalhes que aconteceram em 1958.

Nessa história você leitor não é, nem de longe, alguém que sabe de tudo, na verdade você é também um dos amigos que cresceu e se esqueceu, e sente que aos poucos, sua memória está voltando, da mesma maneira que seus medos de infância também estão ressurgindo cada vez mais vívidos. Mas não se limite ao crer que todo esse envolvimento que o leitor sente acontece pela imposição do narrador em 1ª pessoa, até porque os tipos de narradores são bem diversos nessa história, você verá capítulos, por exemplo, que são todos construídos por retalhos de notícias de jornal. O poder de quase teletransportar o leitor, ao meu ponto de vista, não está na voz narrativa, está nos detalhes descritivos de cada ação, de cada personagem, de cada sentimento expressado por essas vidas criadas pelo King. O poder não está no narrador, mas na voz sensível que o conduz.

Para que esta resenha não se limite a uma mera descrição superficial do que de fato foi essa leitura, gostaria de adentrar em caminhos mais profundos, e dizer que a história vai muito além da aventura de 7 amigos tentando sanar uma força inimiga. Essa narrativa fala de coisas muito inerentes a nós, seres humanos: a infância e o medo, o que são de fato essas duas coisas? Talvez cada pessoa guarde seu próprio significado sobre isso, e até tente arriscar a expressar o que é, e o que foi cada uma dessas coisas. Mas aí surge outra pergunta: será que lembramos mesmo, de maneira pura, tudo o que aconteceu na nossa infância ou em momentos que nos cagamos de medo?

Na página 1072 um narrador-observador nos diz: “[...] e os repórteres dos noticiários levavam alguma versão da verdade para as casas da maioria das pessoas; eles a tornavam real...  embora houvesse quem sugerisse que a realidade é um conceito nem um pouco confiável, uma coisa talvez tão sólida quanto um pedaço de lona esticado sobre cabos entrelaçados como uma teia de aranha.”  E é isto. Quanto realmente sabemos sobre nós? Ou, o quanto achamos dentro de nossas mentes engatilhadas por traumas e decepções, que sabemos ou achamos que sabemos sobre as situações e sentimentos que as lembranças as vezes trazem à tona? É claro, nem tudo que pensamos e lembramos é mentira ou ilusão, mas o que é verdade dentro disso tudo? As recordações sempre que chegam à nossa mesa da vida, passam antes pelo photoshop e pelos revisores do presente, para que o nós, de hoje, possa tragar de uma maneira mais verídica o que foi no passado.

Além dessas questões um tanto psicanalíticas, há uma outra questão que mexe com o leitor, que é a quebra que ele pensa sentir da verossimilhança no espaço da história. Alguns blogs, e leitores pelo mundo a fora da internet costumam dizer que o final desse livro não é bom e que distorce toda a história. Em minha leitura, acredito que em nada sofre o final criado para essa narrativa. Na verdade – e não é conversa de quem perdeu as palavras para explicar -, o final é muito mais complexo do que parece, pois envolve a intenção inicial de fazer o leitor se sentir membro do clube dos amigos, a tal ponto de ele também se questionar se todo aquele hemisfério um tanto fantasioso e vivido por eles na fase adulta (final do livro), foi também vivenciado assim quando eram crianças (1958). A sensação é de que o esquecimento tomou conta de tudo (e lembra que você está recordando junto com os otários sobre o que aconteceu? Talvez seja por isso que sua memória seja tão falha quanto a deles) e você não sabe se desde o início da narrativa você estava lendo algo da realidade palpável ou da realidade meramente fantástica.

Além disso, o final desse livro pede para o leitor que ele seja curioso e pesquisador, e que antes de largar a leitura com a desculpa de que o final se trata de um show pirotécnico, ele busque na sua memória possível as pistas que foram lançadas ao longo da narrativa, como por exemplo, quando os otários fazem um ritual indígena dentro do clube, e isso os faz penetrar na história inicial da coisa, ou pelo menos do que quer que ela tenha sido formada. E para entender esse entrelaçar epilogue, não para por aí, porque agora, a intenção não é mais do narrador, mas sim do autor, e uma parcela da subjetividade colocada por ele, é ao meu ver um tanto inconsciente. Isso porque temos duas grandes referências impostas nesse final, a primeira é a relação da leitura do autor a respeito do mundo do Lovecraft (a qual ele é fã), e a outra, a mais obscura, é com relação aos acontecimentos passados na vida no Stephen King.

No mundo do Lovecraft, o horror não é dado pelo que você já conhece, o horror se encontra no desconhecido, se encontra na incerteza dos fatos. Esse limbo, para nós, seres humanos, é tremendamente assustador, ou você nunca teve medo, ou nunca pensou com confusão sobre o que vem depois da morte? Ou até mesmo, o que se esconde nesse infinito que é o universo? Acredita mesmo que somos os únicos, e se não somos, o que é que existe além de nós? E é aí que King age, ele faz do It esse limbo, que cada um vai interpretá-lo a partir dos seus piores medos e horrores pensados sobre as questões acimas. A coisa, pode ser qualquer coisa, mas nessa atmosfera ela é qualquer coisa do mais horrível da nossa mente. 

A relação da subjetividade inconsciente gerada pelo autor para esse final - e agora é só uma análise ingênua de uma leitora voraz -, talvez esteja relacionada a alguns fatos que aconteceram na infância do King. O abandono e sumiço do seu pai, e depois o atropelamento de trem que seu amiguinho sofreu e que deixou King em choque ao ponto de não lembrar de nada até hoje, pode ser um dos pontos chaves para o início da escrita dessa obra-prima.

Mas pensando bem, talvez essa análise não seja tão ingênua assim, repare: se pensarmos que King passou por um processo de esquecimento depois que escreveu esse livro por estar sob o efeito de drogas e álcool, e não pelo mesmo motivo, mas também sofreu desse mesmo processo de esquecimento com o acidente de seu amigo de infância, podemos ao menos sugerir que ele tenha adentrado esse limbo inconsciente, que com certeza não circundou toda a construção dessa narrativa, mas que talvez tenha possibilitado a essência inicial de toda a história. Essa essência é algo daquilo que não sabemos explicar, como aquela coisa que sentimos nos dias de tristeza sem motivo, aquela coisa que gera em nós uma confusão desnecessária, aquela coisa que se transforma em desespero sem causa, ou seja, a essência desconhecida da nossa existência, que por algum motivo não temos acesso tão fácil, não ao ponto de lembrarmos de maneira pura, por isso, sempre será aquela coisa.

Por fim - e não porque esse livro se esgote aqui, mas porque agora comecei a pensar que o público leitor dessa resenha esteja menor a cada página lida -,  quero dizer que não houve uma intenção Freudiana ou uma intenção forçada de dizer que este livro é autobiográfico, mas o que quis dizer com tudo isso é que por sermos seres ainda bem limitados, não sabemos nos deslocar sem deixar rastros, e há muito mais entre o que achamos que não sabemos, do que, o de que de fato existe entre o que sabemos. Mas agora, o que adianta pensar sobre isso, se eu já não sei se toda a lembrança intencional do que escrevi até aqui é de fato verídica ou se já foi reeditada a toda vez que recordo-a para finalizar essa resenha? Bem, não sei. Leiam It e me contem.

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Ana Magally é Paraibana e estuda letras português na Universidade Federal da Paraíba. É pesquisadora em literatura e atualmente produz resenhas e conteúdos literários no Instagram @caminhosliterarioss. Além dessa rede, possui um clube de leitura online, no qual reúne há quase 1 ano, pessoas de todos os lugares do país para conversar e compartilhar impressões sobre leituras.