Entrevista com o roteirista Zé Wellington
Roteirista da HQ Luzia, lançado pela editora Draco, traz para a linguagens dos Quadrinhos um clássico da literatura brasileira
Zé Wellington é de Sobral, no Ceará, autor de Cangaço Overdrive (2018), Steampunk Ladies: vingança a vapor (2015), Steampunk Ladies: choque do futuro (2019), Quem matou João Ninguém? (2014) e o mais recente lançamento de sua autoria Luzia (2021), e é sobre este último trabalho que vamos conversar com o Zé.
Luzia é uma HQ que traz a adaptação da obra literária "Luzia-Homem" de Domingos Olímpio, escrita no ínicio do século XX, traz muitos elementos de uma época difícil e sofrida do povo sertanejo.
Uma tocante história de uma mulher que sofre os preconceitos de gênero diante de uma sociedade patriarcalista e machista, Luzia é uma figura que representa a força de todas as mulheres brasileiras, as lutas e sofrimentos para sobreviver.
Para começar, vamos conhecer um pouco sobre você, nos conte um pouco de sua origem, sua formação e há quanto tempo atua com Histórias em Quadrinhos?
Faço quadrinhos desde 2004 ou 2005, mesma época em que comecei a publicar contos em coletâneas e revistas voltadas para literatura fantástica. Sempre fui um apaixonado pela arte e pelas histórias em todas as mídias, tenho uma relação apaixonada e terapêutica com o cinema, a música, a literatura e os quadrinhos. Meu primeiro roteiro para HQ rolou depois de uma formação em audiovisual. Sendo de uma cidade do interior do Ceará, montei um grupo com outros quadrinistas daqui e publiquei minhas primeiras histórias em fanzine xerocados. Na época em que fiz vestibular, uma série de eventos inexplicáveis me fez optar pelo curso de administração e trabalhei nessa área a maior parte da minha vida. Hoje a escrita já faz parte da minha vida profissional, mas ainda divide espaço com minha carreira como professor universitário na área de administração e marketing.
Na sua produção, você tem um histórico que perpassa pela literatura nacional, abordagens regionalistas, marginais como Cangaço Overdrive. Como é essa relação com a literatura e como você une essas duas linguagens?
Antes de ser um leitor de quadrinhos eu já era um apaixonado pela literatura. Na escola, eu amava ler os livros paradidáticos, coisa que eu fazia nas férias, antes de iniciarem as aulas, acompanhando pela minha mãe. Por isso minhas primeiras histórias não tinham desenhos, eram contos e conceitos para romances que eu nunca terminei. Os quadrinhos vieram depois e ambos sempre correram em paralelo na minha vida. Hoje eu tento passear pelas duas linguagens, sempre tentando entender qual delas vai beneficiar mais a história que estou planejando. Desde que fiz uma imersão para escrever Cangaço Overdrive, eu comecei a me interessar por temas mais relacionados ao lugar em que eu nasci e moro até hoje, o interior do Ceará. Essa busca encontrou a literatura clássica local, bem como linguagens como a literatura de cordel. Isso tudo acabou misturado na HQ.
Como foi adaptar a obra literária Luzia para os quadrinhos? Conte-nos como surgiu a proposta, da editora ou partiu de você, A escolha da desenhista nesse processo. Por que escolheu um clássico da literatura nacional pouco conhecido como Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, publicado no início do século XX?
Domingos Olímpio, o autor de “Luzia-Homem”, também nasceu em Sobral, minha cidade natal e onde vivo até hoje. As adaptações de clássicos de literatura para quadrinhos são muito comuns, mas ao procurar alguma de “Luzia-Homem” eu não consegui encontrar. Isso me deixou extremamente instigado em fazer este trabalho. Eu tinha lido o livro para fazer o vestibular uma década antes e me lembrava pouco da história, mas que tinha curtido o ritmo dele. Inscrevi num edital do Governo do Estado do Ceará e, quando o resultado foi positivo, fiz a releitura. Fiquei assustado no começo...
Era uma história muito forte envolvendo gênero e fiquei bastante inseguro, num primeiro momento. Foi aí que resolvi convidar a Débora Santos para desenhar e as ideias começaram a desanuviar. A princípio seria uma adaptação o mais próximo possível do integral, mas tinha muita coisa ali que nos incomodava, ideias que deviam fazer parte do dia a dia do escritor e que talvez não faziam sentido hoje. Foi aí que nos libertamos da história original e tentamos entender o conceito por trás dela e reimaginar a história, o que incluiu até alterar o título de “Luzia-Homem” (que a personagem principal tomava como um xingamento) para apenas “Luzia”.
Luzia Maria da Conceição foi uma mulher real ou uma representação lendária, fruto da cultura popular?
Não há indícios que Luzia tenha existido de verdade, embora aqui em Sobral, cenário do romance, muita gente encare que tudo realmente aconteceu. Isso porque Domingos Olímpio usa locações e personagens reais da época e tem uma prosa cheia de descrições precisas da Sobral do final do século XIX. Existem diversos estudos sobre essa relação entre ficção e realidade na obra, um dos mais legais foi escrito pela Carmélia Aragão, que assina o posfácio da nossa HQ.
Durante a pesquisa pra escrever “Luzia”, conversei com a Carmélia que me narrou o dia em que, trabalhando na sua dissertação de mestrado sobre “Luzia-Homem”, uma mulher relatou que sua avó havia conhecido a Luzia da história. Ela rapidamente pediu uma entrevista com essa pessoa, mas, ao chegar no lugar, a mulher apontou um livro na estante (o que deu origem à nossa HQ) dizendo que achava que tudo era verdade porque tinha lido ali, quase como uma versão primitiva do “se está na internet é verdade”. Para muita gente aqui em Sobral, Luzia existiu mesmo.
Em geral, as adaptações literárias para quadrinhos visam um público escolar, para aproximá-los da obra literária, você pensou nisso ou não teve essa intenção de abarcar um público específico?
Em algum momento antes de começar a adaptação, pensei que esse seria um livro comercialmente interessante para o público escolar. Mas durante a imersão, visitando os temas da história, achei que encarar essa obra dessa forma poderia nos impedir de contar a história do nosso jeito. Nesse momento começamos a deixar rolar e simplesmente tentar contar a melhor história possível.
Como você escolhe os temas que vão virar HQs e os desenhistas?
É apelar demais se eu disser que “as histórias que me escolhem”? Para definir as histórias que eu vou escrever não existe muito método: todas elas surgem como faíscas e passam um tempo germinando na minha cabeça antes de eu começar a pensar em realmente escrevê-las. Hoje eu priorizo para ideias que tenham temas com discussões mais contemporâneas, porque é inevitável desde o início imaginar se vai haver um público interessado na história. Sobre desenhistas, já depois de ter amadurecido bastante a ideia, começo a pesquisar entre os meus contatos colaboradores que se sentiriam atraídos pelo tema e que tem um estilo que casaria com a história. Vale dizer que é muito comum o desenhista me procurar com uma ideia, ainda que no momento eu prefira o movimento contrário.
Luzia é uma HQ que tem uma temática atual e necessária para nossa sociedade, marcada pelo machismo e desigualdade de gêneros. Quando li, cheguei a pensar que ela poderia ser uma personagem emblemática da nossa cultura brasileira que representasse tão bem o feminismo e sua luta como Frida Kahlo é esse símbolo. Como você percebe essa representação dela na sua terra, onde a obra é mais conhecida do que no restante do Brasil?
Não só aqui em Sobral, mas de uma forma geral o livro original não é muito lembrado quando se trata das discussões de violência e desigualdade de gênero pelo público em geral. Felizmente, numa busca na internet, você encontra muitos artigos acadêmicos que notaram que a bastante material na obra para essas discussões. Mas vale dizer que a obra original está longe de ter uma perspectiva feminista. Por ter sido escrito por um homem e na época em que foi escrito, a obra original possui problemas em alguns momentos no que tange a representação feminina. Um dos grandes desafios para mim e para Débora foi o de repensar estes momentos no quadrinho, respeitando a trama original, mas atualizando estes conceitos.
Luzia é uma personagem que representa a mulher brasileira, nordestina com sua força física que é uma antítese ao sexo frágil, ela sinaliza muito mais a força interior que ela carrega por ser toda moldada pelas agruras que o sertão obrigou-a ser, assim ela conseguiu enfrentar a violência física, moral e até mesmo ambiental como a seca, a necessidade de ter força para conseguir o seu ganha-pão para alimentar a si e a sua avó. Como é colocar a mulher nessa cena, sendo você no papel de homem, com uma visão que não é feminina sobre a personagem? Você buscou leituras de mulheres sobre a personagem da obra literária para fazer o roteiro?
Por mais que eu tenha estudado sobre a obra a partir de várias perspectivas, especialmente femininas, sempre tive muito medo de que minha visão como homem cis pudesse me levar a repetir os mesmos problemas cometidos na obra original. Por isso, neste trabalho, minha parceira não poderia ser outra pessoa que não a Débora. Mais do que simplesmente desenhar o que estava no roteiro, a Débora participou ativamente na concepção da história. Dela que partiram duas (de muitas) sugestões muito importantes no material final: a mudança no título e uma reimaginação do final da história.
A HQ em P&B dá um tom mais realista à realidade da personagem, as cores da capa já dão um tom mais romântico à personagem, seriam tratamentos diferentes se a HQ fosse colorida?
A opção pelo preto e branco veio da percepção de que isso pudesse contribuir com a sensação climática do momento histórico da HQ, uma das principais secas já enfrentadas no Ceará. Além disso, é marcante o uso da luz nas descrições da obra original e achamos que isso seria uma forma de transpor os contrastes do romance para as histórias em quadrinhos.
Nos conte sobre o processo de produção da HQ, quanto tempo levou para produzir, como foi a participação e entrada da editora.
Foram quase quatro anos debruçado sobre o projeto, com diversas releituras da obra e de livros com análises sobre ela. Entrevistei várias pessoas na minha cidade tentando entender o papel que “Luzia-Homem” tinha na vida delas e na minha também, até encontrar o caminho que eu considerava mais fiel à proposta. Se por um lado buscamos uma certa fidelidade à trama e, inclusive, mantivemos 80% dos diálogos da forma como estão no livro original, por outro aproveitamos que era inevitável construir alguns momentos para explorar sutilezas das personagens da obra.
Se contar uma história é um processo de escolhas, e nos quadrinhos isso fica visualmente mais claro, quando temos que pensar o que acontece em cada quadro, numa adaptação isso é ainda mais visível, porque tínhamos que decidir sobre o que destacaríamos dentro da imensa trama que era “Luzia-Homem”. Tenho uma relação de muita confiança com a Editora Draco, onde já tinha lançado quatro álbuns. Meu editor, o Raphael Fernandes, participou do projeto desde a concepção e teve papel fundamental quando a gente estava montando este quebra-cabeça e tentando fazer “Luzia” funcionar como história, independente do livro original. Lá dentro ainda destaco o papel do publisher e criador do projeto visual, o Erick Sama, e do editor-assistente, Rogério Faria.
Sabemos que cada vez mais, a leitura faz parte de um processo importante na formação educacional e cultural dos nossos jovens. Na sua opinião, a HQ deveria fazer parte do currículo paradidático das escolas públicas brasileiras para que possamos auxiliar na formação de nossos futuros jovens sobre o que é ser mulher na sociedade, desconstruindo essa cultura de uma sociedade cada vez mais machista? Como ela pode ajudar os profissionais da educação a inserir essa temática nas salas de aulas?
Ainda que tenha me apaixonado pela leitura quando adolescente através da literatura, o que se sabe é que isso acontece de forma diferente com outras pessoas. Por serem uma narrativa visual, as histórias em quadrinhos têm um potencial grande de prender a atenção de crianças e adolescentes e quebrar uma resistência que possa haver contra a leitura. Isso sem contar que são uma mídia completa, repleta de histórias e temas diversos. Para mim, quadrinhos como “Maus” ou “Estórias Gerais” são tão poderosos quanto muitos clássicos da literatura mundial. Os quadrinhos podem ser não só uma porta para a literatura, como dizem por aí. Eles, por si só, podem trazer grandes reflexões e aprendizados para pessoas de todas as idades.