Entrevista com Débora Gil Pantaleão
Débora Gil Pantaleão é, dentre muitas coisas, escritora e editora. Uma das coisas é o seu oitavo livro e a sua estreia no romance. Convido vocês para lerem a conversa que tivemos. Enviei as perguntas por escrito, Débora correspondeu por áudio de whatsapp. O resultado, que vocês podem acompanhar agora, é a transcrição de suas falas, com breves edições.
Uma das coisas que ficaram me encucando na leitura do seu romance é a curiosidade de saber mais sobre a composição de personagens tão vivas como Lelé, Patrícia e Betina. Você pode nos falar a respeito desse processo de criação?
Olha, a personagem vovó Lelé foi baseada numa entrevista com a minha própria mãe, Sebastiana Gil. E a gente… Eu e Betina (risos), trabalhamos em cima dessa entrevista. Foi uma entrevista que existiu na realidade, eu fiz essa entrevista com a minha mãe em 2017 e tinha mais ou menos umas duas horas. A partir dela que surgiu toda essa parte que Betina tá entrevistando vovó Lelé. Sobre as duas outras personagens, Betina e mamãe Patrícia, são personagens fictícias, mas que aqui ou ali eu trago uma coisa que vincula com a realidade, por exemplo, mamãe Patrícia na adolescência tocou em bandas que eu, Débora, toquei de fato. Banda Bárbara, banda Farta, enfim, ela comenta isso em algum momento, eu brinco um pouco com isso da autobiografia, tiro uma onda, né? Da biografia, da autobiografia. E Betina ela tem algumas características que tem a ver comigo também. Por exemplo, a questão do veganismo, dela ser uma militante anti especista e é isso. Surgiram dessa forma.
Lelé quando fala surge em um texto pontuado pela pulsação da palavra. Patrícia tem falas inteiras marcadas em itálico. Betina organiza tudo isso ao longo do romance. Como foram essas escolhas narrativas ao longo de Uma das coisas?
Olha, eu queria dar uma identidade a cada uma. Então quando cada uma pega a palavra pra narrar eu quis trabalhar, também, uma estética diferente pra cada uma delas. E aí o que eu pensei foi isso: essa estrutura com esse jogo das vírgulas e longos parágrafos pra Betina. A vovó Lelé ser toda em caixa baixa, pensando principalmente na oralidade, eu faço um jogo aí com o que dizem ser intelectual. Eu brinco com isso, né? Do que é intelectual, o que é popular, o que é oralidade, o que é formalidade, o que é a língua portuguesa, pra quem, né? Então eu faço algumas subversões nesse sentido. E a mamãe Patrícia foi algo mais simples, ela pega em alguns momentos a fala, e tal, e aí quis marcar isso também. Pensar um pouco nessa perspectiva, de como as histórias podem ser diferentes, como nossas perspectivas podem ser diferentes a partir de quem conta.
O romance traz pautas sociais e ambientais. Provavelmente alguém vai ver militância na obra. Agora, ao lê-la, fica impossível dizer que não estamos diante de literatura. Como você relaciona suas posições políticas com as das personagens em Uma das coisas?
Eu me pergunto, sabe, Hermes, se existe não ter postura política. Me pergunto isso. Porque até mesmo os que se dizem ausentes ou neutros, acabam que tão ali numa política da morte, né? Numa política do ódio muitas vezes, da ignorância, da alienação. Então pra mim sempre há política em tudo. E se as pessoas vão achar isso exacerbado em minhas personagens, por exemplo, não me incomoda. Eu acho que elas têm um vínculo político de fato, elas vão às ruas, né? Contra Bolsonaro, contra Paulo Guedes em um momento no romance. São pessoas super contemporâneas, intelectuais, ao mesmo tempo que tiveram vidas muito difíceis. Quando eu digo intelectuais penso principalmente em mamãe Patrícia, que ela é uma pensadora, uma psicóloga psicanalista. E Betina já vem com toda essa referência da mãe, enquanto que vovó Lelé teve mais dificuldade pra acessar a universidade. Então a filosofia de vovó Lelé vem de outros lugares, digamos assim, embora ela tenha conseguido acessar, mais pra frente. Então você tem posturas políticas em vários espaços. Acredito que vovó Lelé tenha uma postura política ali, por mais que ela se ausente um pouco. Quando a personagem diz, né? Que vovó Lelé tinha medo de ir pras ruas, mas que ao mesmo tempo é uma figura que causa um incômodo em alguns espaços. E como ela resistiu a tudo isso. Eu… é isso. Eu creio que não tem como ser imparcial.
A ambientação percorre o interior da Paraíba, João Pessoa e região metropolitana. Você traz o IFPB e a UFPB. Temos aqui o Nordeste que faz ciência e pesquisa. E são ciências produzidas por mulheres periféricas. Gostaria que você comentasse a respeito dessa escolha.
Olha Hermes, só de ler essa tua questão quatro eu já fico arrepiada, porque realmente você capta aí que eu tô querendo gritar e grito através do romance, que é a manutenção de possibilidades de mulheres periféricas, de mulheres em geral, de pessoas negras, lgbts, pessoas que possuem alguma deficiência, pessoas PCDs, no caso, de poderem acessar uma universidade. Terem uma universidade de qualidade, pública, gratuita, de poder fazer ciência nas diversas áreas, seja de humanas, de exatas. Eu quis muito que isso estivesse presente no romance. É sobre muitas coisas, mas uma das coisas (risos) é sobre realmente lutar por uma universidade pública, gratuita, de qualidade. E de como nos governos do PT a gente pôde acessar mais esses espaços. Eu acho que isso é importante de ser dito e é importante mostrar também como o desmonte das universidades públicas, que tá ocorrendo desde o golpe, com o vice lá… não quero nem falar o nome, e com o Bolsonaro. Com a desgraça do Temer. Digamos assim. Isso tudo vem desmoronando. São muitas vidas que desmoronam junto com a precarização da universidade. Não só vidas elitistas, sabe? Mas a gente estava conseguindo acessar mais e as portas vão se fechar para todos. Tá se fechando para todos: brancos, negros, indígenas, enfim, dessa classe social, que não vai poder pagar por universidades privadas. Então, pra mim, é umas das coisas mais tristes que tem acontecido nos últimos anos depois do golpe.
Há um romance juvenil entre Betina e Raíra, uma Potiguara. Essas personagens podem encarnar uma relação afetiva entre subjetividades negras e indígenas?
Quando eu escolhi, optei por botar duas personagens, uma negra e uma potiguara, uma indígena, como amigas nesse romance. E dentro de uma universidade pública, de um instituto, né? No caso o IF. Eu quis realmente trazer essa pauta do racismo enquanto estrutural e enquanto para diversos povos, diversas comunidades. Comunidade negra sofre racismo, comunidade indígena sofre racismo, pessoas asiáticas, enfim, eu quis trazer um laço dessas lutas, quando eu coloco Betina e Raíra juntas, sabe? Não só em relação à afetividade, que elas são amigas e tão ali, elas têm uma espécie de relação que nem elas mesmas encontraram ainda, né? A cena que Betina e Raíra dão um beijo, o primeiro beijo das duas, elas falam que não vão privatizar esses beijos, então eu trago muito a questão de repensar a monogamia e, para além dessas pautas, eu acho que é isso. Um discurso que me incomoda muito é o discurso de ódio que pessoas negras devem apenas se relacionar com pessoas negras, sabe? Eu acho isso um discurso um pouco fascista, na verdade. E como eu me relaciono, por exemplo, com uma mulher branca, a gente acaba sofrendo de diversos lados, tanto no racismo, de pessoas brancas que são racistas comigo ou com a gente enquanto casal, quanto com pessoas negras cobrando que eu não deveria me relacionar com uma mulher branca. Então eu acho esse discurso um pouco fascista, embora compreenda que existe toda uma estrutura que faz com que nós mulheres negras, homens negros, busquemos em pessoas brancas nossos pares amorosos. Mas eu acho que são coisas diferentes, sabe? Eu acho que uma coisa é você fazer uma proibição em relação a pessoas não se relacionarem, não se amarem, até porque eu acredito que são os inconscientes que se amam (risos), então… e obviamente esses inconscientes estão presentes em um corpo que tem cor e tudo mais, mas eu acho que é mais de uma complexidade do que de uma proibição mesmo.
O estudo fez parte da realização de Lelé. Foi o caminho escolhido por Patrícia, que é professora universitária. Betina trilha percurso semelhante. Apesar de existir uma relativa melhora nas condições de vida de cada geração, acredito que seu romance mostra que cada geração encontrará seus dilemas, obsessões e conflitos para lidar. O que será de Betina e do tempo dela, sabendo que a narrativa se passa em 2019?
Eu acredito bem nisso. Pelo menos quis fazer isso, de apresentar um pouco dos dilemas das gerações. Você tem três gerações aí, de vovó Lelé, de Patrícia, de Betina e os conflitos que causa. Como a gente deve também agradecer aos nossos ancestrais, tudo que se passou e as lutas que ocorreram, né? Que foram vencidas em partes, ao menos. E eu fico pensando que há também uma espécie de frustração, de como as mudanças demoram a ocorrer e de como sempre a falta vai aparecer. Não há como a gente se completar, não há como todos pensarmos igual e termos uma sociedade perfeita. Eu acho que isso aparece bem forte assim, embora continuemos a sonhar e a poder desejar uma sociedade mais justa, socialista, e enfim.
O romance está repleto de colagens, referências, citações, intertextualidade e metanarrativa. Há também menções a filmes, músicas e danças tradicionais. Você pode falar mais sobre esses pontos no processo de composição do romance?
A minha intenção enquanto estética, digamos assim, ou forma, seja lá como a gente queira chamar isso: conteúdo, forma, não sei. Forma, conteúdo. Foi trazer uma estrutura mais tradicional, que é uma coisa que eu não tinha feito ainda na minha escrita, ou seja, de pensar uma história com começo, meio e fim. Então você tem ali vovó Lelé criança, adolescente, adulta, idosa. Então você tem uma sequência. Por vovó Lelé a gente tem uma linearidade. E por Betina a gente tem uma linearidade que essa história se passa no ano de 2019, no Brasil, na Paraíba. Então a gente tem uma coisa tradicional nesse aspecto. E aí com a linguagem eu quis brincar, né? Quis usar uma linguagem mais experimental no trecho de vovó Lelé, e até de Betina. Brincar um pouco com isso. Onde tá o revolucionário em termos de forma, muitas vezes? Aí eu brinquei, ao invés de ser Betina que fala na oralidade ali, caixa baixa, sem pontuação, é vovó Lelé que é mais ousada na linguagem. Então eu quis brincar um pouco com a questão do preconceito linguístico, das opressões em relação a isso, das pessoas da cidade, do sertão, de como é falar direito, como é o certo, que é a norma culta. Então eu meio que me explodo em relação a isso, porque eu acho que é um discurso muito opressor, principalmente em relação às pessoas negras e pessoas pobres. E quis fazer um jogo em relação a isso. Eu gosto de uma fala que Isabor Quintiere, que é uma escritora amiga, disse sobre a minha escrita que me fez ter noção de algumas coisas, assim. Ela disse que a minha escrita é ao mesmo tempo cult e pop. Eu achei isso interessante e pensei que realmente isso cabe muito para o romance Uma das coisas.
Então acaba que o uso das colagens, das referências, das citações que você menciona, entra no âmbito de dar uma respirada no texto, ao mesmo tempo que entra no âmbito de eu ser uma escritora contemporânea. Refletindo minha época. Que é extremamente paródica, usa-se muito de metanarrativa, metaficção, enfim. E de trazer também… eu acho que quando aparece as músicas, o que que elas veem de dança, o que elas dançam, eu acho que traz também uma caracterização para as personagens que é importante.
Débora, você quer deixar algum recado para as pessoas leitoras sobre o seu romance?
Eu creio que o único recado que eu teria pra dar pras pessoas que vão ler Uma das coisas seria o de leiam, sintam, pensem. E releiam. Eu acho que meus textos sempre trazem esse convite à releitura. E tentar ir para o texto com a cabeça um pouco aberta, pra ouvir aquelas personagens, pra senti-las. Acho que nesse sentido. Queria agradecer também pela entrevista, adorei muito as questões, muito feliz em responder. Brigada, Hermes.