19 de julho de 2021

Leia Kramp, da chilena María José Ferrada

M. é uma menina de 7 anos que, encantada com a vida de caixeiro viajante de seu pai, decide que iria trabalhar com ele. Ser sua ajudante. Tendo o consentimento deste e uma certa ausência de sua mãe, segue então um roteiro de viagens entre vilarejos e povoados vendendo pregos, serras, parafusos, martelos, entre outras coisas dessa ordem, da marca Kramp. Dentro de um velho Renault, pai e filha estabelecem um código de ética e conduta só deles. M., sendo a menina esperta que é, vai inserindo suas estratégias para alcançar seus objetivos - bilhetinhos deixados na maleta de seu pai (D.) sugerindo que gostava de o ajudar e pedidos de comissão depois de quase um ano de idas e vindas, transformados por D. em presentes, visto a incoerência em se pagar a uma criança...

É curiosa a escolha da autora em trazer personagens que são nomeadas apenas com as primeiras letras de seus nomes como protagonistas e, assim, ter praticamente todas as demais personagens identificadas da mesma forma. Temos em M. nossa narradora e D. os personagens centrais. Seria este um recurso utilizado pela autora, sendo a narrativa protagonizada por uma menina? Por ser uma história que se passa nos anos 70, em plena ditadura no Chile? Para resguardar sua própria história, visto que a autora baseou-se em fatos reais de seu pai, também caixeiro viajante? 

A história é narrada a partir das memórias de M. e, portanto, nos guiamos pelo encantamento que ela possui por esse universo ao lado do pai. Os dois, entre outras coisas, burlam a caderneta escolar de M. para que ela possa fazer as viagens. Sua mãe, segundo seu olhar, é distante e pouco envolvida na sua criação. Desta forma coloca como única regra que a menina não perca as aulas e que esteja em casa sempre antes das nove da noite.

“O que quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos. Eu, aos sete anos, tinha entendido a minha e topado com o catálogo da Kramp.” (p. 18)

Ao longo da narrativa vai se descortinando o período da ditadura de Pinochet e o desaparecimento de pessoas, de forma muito sutil e poética. Outro aspecto que vamos tendo acesso é a percepção dela sobre a relação de seus pais. E como ele é quase um super-herói, e a mãe uma pessoa apática e sem vida, que vive dentro de casa. Nos deparamos, ainda, com um rompimento implícito da educação formal de M. em contrapartida a uma educação de ordem prática e que se dá no cotidiano vivenciado (mesmo que com algumas passagens questionáveis).

O ponto de virada na narrativa, e que surge de forma muito sutil, se dá quando M. percebe os pontos soltos da engrenagem que ela considerava perfeita e da fantasia de uma menina encantada com o universo masculino. Há uma ruptura e há uma tentativa de resgate dessa fantasia por M., mas que na verdade só evidencia o quanto tudo era irreal. É nessa virada que o livro ganha força e, sutilmente, nos põe para pensar nas relações familiares, em depressão, em projeção, em desaparecimentos, em vivências e no fato que a realidade sempre bate à porta e descortina tudo. 

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Juliana Costa Cunha é assistente social e mestra em psicologia. Nasceu e mora em Recife, capital de Pernambuco. É amante da música e da literatura. Criou o @coisasqueleio em 2015 e desde então faz o que sempre desejou: conversa sobre literatura com um mói de gente. Colabora também com o Blog O Poderoso Resumão e recentemente lançou a Zine Digital do Coisas Que Leio.