30 de junho de 2021

O parque das irmãs magníficas, de Camila Sosa

A VIDA É MESMO UMA FESTA

O ótimo O parque das irmãs magníficas, romance da argentina Camila Sosa, em muito, lembrou-me os versos de Caetano Veloso: “E dançamos com uma graça cujo segredo/Nem eu mesmo sei/Entre a delícia e a desgraça/Entre o monstruoso e o sublime”. 

A difícil vida e sua protagonista, ou as difíceis vidas, de cada uma das irmãs magníficas, não significa apenas tristeza e dor ou se resume a prostituição, esbórnia e festa. Diante da monstruosidade do preconceito que condena seus corpos, suas existências e feminilidade, revelam sororidade, afeto e completam uma na outra o que lhes falta de família, amor e cumplicidade.

A narradora sentencia que cada um ano de uma vida travesti é como sete anos de uma vida “normal”. A dualidade de uma existência demarcada entre o mundo “normal”, ao qual ou se acomodam ou são rejeitadas, e o mundo de merda. Não há um meio-termo, um purgatório, um espaço qualquer que seja entre o céu e o inferno. Existem entre a sarjeta e o desejo. Não o erótico em si, mas o de ser fêmea. Nesse sentido, O parque das irmãs magníficas é um relato assombroso, duro e demasiado tocante das vidas travestis.

Somos conduzidos pela protagonista desde a sua infância pobre e atribulada com uma mãe submissa e um pai violento nos rincões da Argentina às noites de prostituição num parque em Córdoba, onde se veem ameaçadas pela violência caucada no desejo, na recusa e no moralismo. O patinho feio recém-chegado à cidade, aos poucos goza da solidariedade, partilhando medos e dificuldades, mortes e celebrações numa irmandade de travestis reunidas em torno de uma grande mãe.

O livro é todo trânsito. Faz-nos sorrir e chorar. Há momentos de aridez, em especial, os que revelam que o corpo travesti abriga, encarna desejos ocultos e incofessos, guarda a ambiguidade da brutalidade fálica e a delicadeza do feminino. Seus corpos construídos, as expressões de maternidade e sororidade, a partilha dos desejos e medos, amores e carências acrescenta todo um colorido e nos aproxima não apenas do relato pessoal da protagonista, mas de toda a irmandade. 

Resistem no mundo merda, imersas na realidade e na fantasia, nas tetas siliconadas jorrando leite, uivando como lobisomas ou voando como mulheres-pássaro: ânsia de mãe; solidão encarnada sob o espectro prateado da lua cheia; desejo reprimido de voar de quem nunca teve a própria voz. Sim, soa melancólico? Sem dúvidas. Contudo, há esperança, riso, deboche, alegria. E nada é mais ferino, agressivo, brutal que uma travesti que sorri, ama, amamenta, voa, adquire voz. Juntas elas resplandecem magníficas como são, mas quando sozinhas e distantes, morrem. Suas existências periféricas dependem dessa irmandade. Ela não é acessória, mas significa a diferença entre viver e morrer. 

Se por um lado termino com um gosto amargo, quer por ter lido um baita romance, quer porque me toma o desfecho; de outro, resplandece a esperança, olhar solidário, a inclinação comovida de um outro olhar às irmãs magníficas, que fazem da noite o seu manto, de seus corpos templos e de sua teimosia ritual. E dançam com uma graça cujo segredo não se sabe, entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime, a repetir como um mantra (ou um grito ou deboche) que: “A vida é [mesmo] uma festa”.

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Ivandro Menezes nasceu em Mamanguape, interior da Paraíba, em 1980. Formado em Direito, atua como professor universitário no sertão baiano. Podcaster no Lavadeiras do São Francisco e colaborador do Canal Mais Literatura (no YouTube). Autor de Sangrem os porcos, depenem os frangos (Moinhos, 2018).