Uma voz que representa todas as vozes, a força da poesia de Audre Lorde em "A Unicórnia Preta"
Clube LiteraturaBr de Poesia discutiu no mês de abril a obra publicada pela editora mineira Relicário
“A Unicórnia Preta” é uma das obras da poeta e militante ativista americana Audre Lorde já lançadas no Brasil, e desta feita, a editora Relicário nos presenteia com uma edição bilíngue no ano de 2020. A coleção Audre Lorde teve a alegria de ser publicada pelas editoras Ubu, Bazar do Tempo, Elefante e Relicário.
Um livro de poemas com 300 páginas, digno de ser lido com muito afinco e respeito, nele a poeta resgata tradições, aborda questões de gênero, lutas políticas e sociais. A luta que Audre apresenta ao longo do livro não é só sua, não é algo pessoal, é maior, possui toda uma história que a antecede e consegue transcender de uma forma atemporal. Toda a trajetória de luta ainda persiste e é uma guerra sem fim em que é preciso o tempo todo ouvir essa voz de muitas vozes.
Ao lermos a poesia de Audre Lorde, mesmo em silêncio, solitariamente, o leitor vai perceber um grito nos seus versos, que vem de dentro da consciência. E enfatizo que se você, leitor(a), não sentiu ou não ouviu essa voz, você está surdo para a realidade que o cerca, porque ela ainda segue até os dias de hoje sendo calada por muitos a custa de muitas vidas.
“A diferença entre poesia e retórica
é estar
pronta para matar
a si mesma
em vez de seus filhos.”
(poema Poder, pág. 257)
Lorde ao longo dos seus poemas revela diversas formas de abuso, que está em todos os lugares, o medo que suprime as esperanças tornando-as furtivas e falsas quando lemos o poema Fantasma (p. 199). Em quê acreditar se a única força está em si mesma? É nessa força que ela se apoia ao longo de sua poesia, vê muitas batalhas perdidas, mas não se vê vencida porque não se trata de perder ou desistir, se trata de resistir. O título da obra carrega esse significado, unicórnia representa força, e Audre Lorde mostra de onde vem essa força para lutar e suportar cada morte enfrentada pela comunidade negra americana.
““São as pequenas mortes no supermercado” ela disse
tentando abrir a minha cabeça
com seu cutelo de carne branca
tentando me contar como
a dor dela encontrou a minha
no meio do caminho
entre as ruínas fumegantes num bairro negro de Los Angeles
a malditas manhãs nas ruas infanticidas de Nova York.”
(poema A mesma morte várias e várias vezes ou Canções de ninar não são para crianças, pág. 153)
A presença da criança em sua poesia demarca a presença da dor que vem de berço, desde a separação do seio maternal, em que ainda bebê se perde a proteção e carrega por toda a vida, e ao olhar para as outras crianças ela enxerga nelas o seu desespero, o mesmo que a trouxe até vir a se tornar mulher.
A fé nos orixás e entidades da cultura africana mostram as raízes da espiritualidade das mulheres pretas e as tradições que se fincam com o tempo no seio da comunidade.
Sua poesia também traz amor e erotismo quando fala das suas relações lésbicas, um tom bastante sensual que transita de forma profunda o eu no mundo para o eu interior em um mergulho que nos retira da situação de reflexão para uma suspensão sensorial. Onde se revela nos poemas Sonhos [...] (pág.181), Recreação (pág. 189) e Mulher (pág. 193).
Engana-se quem acha que nesse livro vai deparar com uma poesia em que Audre fala apenas de si, ela traz outras mulheres, inclusive de sua família, amigos e amigas. Por isso essa obra é representativa de várias vozes numa única que ecoa ao longo dos poemas. O livro é um convite a percorrer pela sua trajetória e formação enquanto mulher preta, militante, escritora, mãe, poeta e lésbica, como ela mesma se define na biografia. Que o leitor ao final desse percurso poético junte a sua voz ao de Audre para que possa agregar nesse mesmo coro uma só canção.
Apresentação do livro por Jess Oliveira, crítica literária, poeta, tradutora e editora; tradução de Stephanie Borges que apresenta uma nota sobre algumas escolhas durante a tradução como os nomes dos orixás buscando respeitar o glossário feito pela autora que consta ao final do livro.
Projeto gráfico e capa respeitam os demais livros da coleção já editados e publicados pelas editoras parceiras, a saber: “Sou sua irmã: escritos reunidos e inéditos” (Ubu, 2020), “Entre nós mesmas – poemas reunidos” (Bazar do Tempo, 2020), “Zami, uma biomitografia” (Elefante, 2021).
“A unicórnia preta” foi o quarto livro que fez parte do clube de leitura de poesia do LiteraturaBr sendo discutido mensalmente com a participação de apaixonados e apaixonadas por poesia de todo o Brasil e mediado por Nathan Matos. Vem pro LiteraturaBr! www.literaturabr.com.br