A vertigem da espera
Esperar é o contrário de esquecer. Há semanas que espero. Hoje você me chega de supetão. Já nem mais conhecia as tuas feições, teu jeito mansinho de se jogar por cima de mim quando decides que é o momento. Enquanto bebias água e descansavas da viagem, lembrei do silêncio dos teus decíbeis, da intangibilidade da tua pele, da incontrolabilidade com a qual cais, do teu cheiro de Casas Sloper. Achei que já tivesse esquecido quem eras, mas tua chegada reavivou minha memória quase já impregnada com a genética do Alzheimer.
Embora nunca tenha tirado notas muito boas na matéria paciência, casualmente ano passado, fui a melhor da turma do bairro durante a quarentena. Desde então, te espero. Espero que passes. Espero que chegues. Espero que não me esqueças aqui esperando por ti como se esperar fosse tudo o mais que possibilita meu personagem.
A vida vai bem. Aqui acolá vai bem. O velho trampo se antes já era escasso, agora só mediante milagre, que por sua vez também anda em fase de extinção. Andei procurando o que fazer nestes tempos em que não apareceste. Aprendi a fazer pão artesanal de lenta fermentação. Aprendi e pronto. Tentei engravidar, mas os óvulos tinham outra proposta. Comecei a enézima dieta. Fali. Pensei em cápsulas alucinógenas como recurso criativo para meus dias nublados de velhice precoce mas pensando bem, é caro, e ainda destrói o fígado! Foi neste cenário de deriva, para não dizer desgraça, que abri uma gaveta com umas coisinhas escritas há umas poucas décadas e tomei uma coragem. Escrever sempre foi aquele prurido desconsertante, devastador o suficiente para eu nunca ter aprendido a lidar. Escrever para depurar, carburar. Digerir, o que quer que seja que os novos tempos requeiram destes pobres Homo Sapiens de agora. Considerando que todos os precipícios já tinham sido provados, faltava somente o precipício da escrita. Respirei fundo e embarquei.
Por trás da minha KN95, faço das tripas coração para me inspirar. Invento moda, falo sozinha, crio personagens absurdos, transformo meu banheiro em caverna habitável, troco de óculos, escrevo para inventar um outro mundo dentro daquele que faliu, daquele que fizemos falir. Sinto saudades do que um dia foi mas nem sei mais o que era. Se você viesse mais, a paisagem mudaria, se você viesse mais frequentemente, talvez a areia da praia virasse açúcar gelado que climatiza e, portanto, conserva os futuros de fermentarem assim como nestes tempos de hoje.
Senti tanto a tua falta que aprendi a gostar de estar em mim. Agora, com a tua chegada, me incomoda o excesso de alegria que portas, o campo espacial que se reduz com a tua presença. A novidade em ti me força a sair do meu tédio para fazer-te companhia. Percebo o meu despreparo ao encarar a realidade. Perco o meu centro tão facilmente quanto um cochilo após o almoço em um dia de verão. Sonho em quando desaparecerás da minha vida de repente, assim posso voltar para mim. Enquanto isso não acontece, volto a escrever para cumprir aquele prazo, o tal prazo do dia 11 do mês de janeiro com o qual venho sonhando há anos. Imagine, ganhar aquele prêmio seria como ter você, sem máscaras, seria uma felicidade fulminante, exatamente como eu atribuo ser a felicidade, um estado passageiro de êxtase, precário em sua condição, vindo sempre acompanhado de envelopes com documentos escritos com códigos de barra, sugerindo a chamada à velha e dura realidade, a qual nunca foi bem parte do meu feitio.
Mais uma vez espero pela coragem de sair de casa. Preciso comprar mantimentos antes que escureça. Cogito pedir uma pizza para ficar enrolada no meu edredom mas... e o leite para o café da manhã de amanha? Olho para ti da janela, te vejo constante, presente,. Sinto preguiça, mas encaro e vou em direção a ti.
Lá fora, o movimento foi artificialmente reduzido. Faces mascaradas, corpos apressados cruzam as ruas com sombrinhas na mão e botas que desistem de deslizes. Idosos aguardam o sinal de pedestres para cruzarem a rua. Não há ajuda e não espera-se ajudas, cada um no seu cada qual. A pior das hipóteses é verdadeiramente a aceitação da própria vulnerabilidade e a não voluntária dependência no estranho. O estranho que encontro na rua é como a presença da tua novidade. Constato o desejo de interagir, aquela saudade de ser um ser humano gregário mas o frescor da tua inusitada presença me impede, ou eu mesma me impeço de devaneios.
O supermercado, é a grande atração dos últimos tempos. Este, por sorte, tem sido o único programa externo possível, prazeroso, e que, dada a sua relevância, torna-se vital como ir ao cinema. Mais uma vez, espero que os tais estranhos percorram a seção de cereais, a de laticínios, dou minha vez a todos, seria o mínimo! Onde estão os Idosos? Olho ao redor, sumiram! Mantenho a distância, afinal somos estranhos uns aos outros, agora mais do que nunca. Nenhum estranho vê meu batom cintilante por trás da máscara; o sorriso que eu dou para que passem na minha frente torna-se inútil, quase uma caridade de mim para a minha máscara e, em seguida, rebatida para mim mesma. Corro para a seção do álcool em gel, mas a prateleira está vazia. Ao lado, o papel higiênico, ufa, apenas um pacote de quatro, agarro-o com voracidade como naquele dia em que tomei teu pescoço para cheirar o perfume novo que compraste no Duty Free quando voltavas de Paris. Próximo destino será a farinha. Preciso urgentemente repor meu estoque. Tinha planos de fazer um bolo de rolo de laranja, já que goiaba por estes cantos não há. Satisfeita com quatro produtos essenciais na minha cesta, encaminho-me em direção ao caixa. A senhora caixa e eu, nos entreolhamos. Estamos separadas por duas máscaras, um vidro e uma mensagem de áudio que me lembra para manter a distância de pelo menos dois metros entre meu companheiro estranho e eu. Terá ela lembrado de por um batonzinho hoje? Abro a carteira, tiro o cartão e faço meu pagamento. Estranho! Terá sido que o dinheiro perdeu o seu valor ou fui eu que perdi o tesão no consumo? Me dou conta de que tudo torna-se relativo. Achar papel higiênico é um golpe da sorte. Farinha, então, torna-se uma "commodity"; o sorriso da senhora caixa por trás dos olhos espremidos pela sua máscara é a minha miragem. Empacoto meus quatro itens, satisfeita com a sacola que trago de casa. Há que se tentar um ato sustentável de vez em quando, senão, para o que serviu aqueles anos de formação acadêmica em sustentabilidade, o catolicismo dos novos tempos?
Abraçada ao meu pacote de mantimentos, saio pela rua. Forçada a fechar os olhos e já sem conseguir enxergar direito com a tua presença insistente nos meus olhos, faço uma pausa para não me encharcar de você. Abrigo-me na parada do ônibus. Sento e espero. Um dejà-vù de antes. Observo os outros que correm para suas casas tentando amparar seus pertences. A parada do ônibus a um quarteirão da minha casa parece ser o refúgio perfeito para voltar para mim. Para estar debaixo de ti, vendo-te cair na mais plena efevercência. Um refúgio para pensar em quais ingredientes farão parte do meu próximo texto, e com que tipo de solidão vou mariná-lo. Como reagirá meu público, ah este coletivo que eu quero dedicar minha vida de agora em diante.
Tiro meu bloquinho de notas do bolso, tento, com agonia, achar a caneta na profundeza da bolsa. Preparo com uma respiração o próximo insight. Escrevo achando um absurdo dedicar-se a esta arte, mas no momento não há nada que pulse mais além disto. Escrevo sobre o relativismo na saudade. O desejo de estar aqui e acolá o tempo todo. E quando se está aqui, deseja-se o acolá. Quando se está acolá, o aqui torna-se imprescindível. É esta eterna insatisfação que leva Úrsula a riscar o já escrito e o já feito, como se não fossem mais dignos de sua consideração. É o eterno não considerar nada do que poderia estar bom. E em momento algum está, porque Úrsula sente-se só, sem editor, sem cartucho, sem pai nem mãe, sem certezas que guiem os seus nortes. Embrenhada num turbilhão de talvezes, uma réplica de algo não-digno, desmemorável, nem sequer para principiantes. Teria sido insuportável ter ficado lá atrás. Teria sido melhor, mas o momento de mudar o teria sido, naquele momento teria sido impossível. Agora a crucificação pelo não-feito é algo inútil. Então o que dá para ser agora quando o caminho já se fez metade? Como se lida com os atrasos, com as pressas indevidas, com uma construção emergente que, de repente passou a não condizer com o ideal de projeto original para si? As altas expectativas, os moldes adquiridos, os ídolos errados, os ideais de sucesso contribuíram para que Úrsula passasse a vida num transe. Agora, seu aeroplano tenta aterrisar com uma forte neblina e com uma pista cheia de buracos. Pensa em que legado deixará, tem pressa, como se amanhã... com toda certeza amanhã, será seu último dia, o dia em que fará oitenta anos. O dia em que tudo virará pó. A pressa e a sequência cronológica do relógio traz a ira com voos inúteis. Faltou estratégia, faltou tanta coisa na compreensão da adolescente que atirou para longe os moldes e os mapas dos outros para criar seu próprio personagem.
O ônibus chega, meus estranhos amigos sobem-no. Eu fico. Fico em meu transe voluntário. Decido ficar para ver se chego a algum lugar intermediário entre meu passado e o meu futuro, que não é o meu presente, cheio de torturas. Minhas mãos e pés já estão adormecidos, agora chega.. seria hora de voltar para casa.
por Caroline Costa