Elas marchavam sobre o sol | Leitura
Novo livro de Cristina Judar, Elas marchavam sob o sol, sai pela Dublinense. Abaixo, um trecho do livro para deixar vocês com vontade de levar o livro pra casa. Se você usar o cupom LITERATURABR você leva o livro com 20% de desconto no site da Editora
Leia o trecho:
Os relógios de cuco e de badaladas são fantasmagóricos. Reza a lenda que há espíritos dentro deles: quanto mais velhos, mais fantasmas eles contêm, naturalmente atraídos pelo som, que, para eles, funciona como uma espécie de ímã. Minha avó era antiga quando parou de funcionar. A cada dia, uma peça dela se quebrava. Espíritos também a ocupavam. Ela era oca e proferia sons de hora em hora. Repetia as palavras, suas próprias badaladas. Um dia ela foi pessoa, mas agora era um objeto frio, duro e encostado na parede. Ela nos fazia lembrar das obrigações rotineiras. E parou de vez quando seus ponteiros deixaram de girar. É muito estranho imaginar que uma pessoa-relógio um dia foi pessoa-pessoa. Era o que minha mãe dizia sobre o seu passado, embora eu não acreditasse.
Talvez para me convencer, um dia ela me chamou em seu quarto e me entregou um broche em formato de coroa. Ela havia ganhado ele, há anos, da minha avó-pessoa. Aceitei o presente, imaginando quantos anos passariam até que a minha mãe-mãe também se tornasse uma mãe-relógio e até que eu mesma me tornasse uma velha-relógio. Mas, antes disso, eu teria que seguir a ordem das coisas, respeitar as obrigações vinculadas ao amadurecimento e ter uma menina-filha que herdasse o broche da nossa tradição familiar — mas eu ainda era muito jovem e nem sabia se um dia ia gerar qualquer coisa dentro de mim, muito menos um ser que tivesse o meu corpo como cativeiro.
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É sabido que os homens são os donos do planeta. A eles são permitidas as invasões territoriais, o voo, o salto e a conquista. Já às mulheres, o que no corpo, na mente ou na ação se expande é malvisto, é interditado ou então transformado em foco do desejo desses mesmos homens, ávidos por ocupar os nossos domínios. O avesso da expansão é a perda contínua de território, a ponto de se chegar à invisibilidade — o que é algo tão nocivo quanto estar aprisionada, especialmente quando se tem um chão e dois pés para pisar nele.
Eu pensava nisso enquanto fumava um cigarro que mais parecia um foguete. Eu e Rafael, afilhado de Rosana Carvalho, ostentávamos o bastão fino entre os dedos, numa elegância de manequins de vitrine. Exibidas nas trevas, nossas mãos estavam levemente iluminadas pela pontinha rude e rubra. Nossas bocas queimavam como o cão. Na ardência, derramei algumas lágrimas, mas fui me acostumando. Que coisa mais louca é fumar: me senti um dragão a botar chama para dentro. Com o fogo voltado para as minhas entranhas, eu aplacava todo o meu mal íntimo. Imaginei que ficaria seca internamente, já que ao meu corpo não é permitido: (1) desaguar, (2) se reconstruir, (3) se estender. Rafael, por sua vez, apenas deixaria de crescer em algumas partes específicas ou no todo. Permaneceríamos perfeitos bibelôs constantes, anatomicamente imóveis, o que significava, em outras palavras, que seríamos jovens para sempre.
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Há uma deusa não descoberta, sem nome, lenda ou mito de origem. Tampouco ela é do fogo, do ar, da água, da terra. Está situada entre os elementos; carrega um tanto de cada um, nada de apenas um deles. Seus domínios são a luz que atravessa nuvens, o vento que percorre vales, as noites de lua azul, o zunido das abelhas, o soar das asas do besouro, o pulsar que encobre os fetos.
Ela entende um idioma não falado, parte gesto, parte intenção, parte suposição. É multicolorida e invisível, dependendo de como quer ser desconhecida. Seus preceitos e leis se alternam diante das necessidades — as suas ou as de quem, inconscientemente, a ela apelam. Seu altar é o dia e a noite, a aurora e a tarde.
Ela emite vapores dentro dos corpos dos seus devotos, dá vazão a marés nascidas de traumas antigos ou a canções interpretadas por voz e oboé. Ela arrasta terrenos áridos para fora de corpos que os acumulam como baús do tesouro, libera espaço para a plantação de hortaliças, para a multiplicação de ovos e para a aterrissagem de insetos. Ela aquece a chama que dá origem às ondas, já que é preciso uma boa parcela de fogo para gerar as forças de movimentação dos oceanos. Ela nos ensina que os ares aspirados por uma mesma comunidade, os humores que se alternam entre os polos e o silêncio de morte gerado após o término de uma relação duradoura, são territórios conquistados e podem ser instrumentos de poder. Ela carrega, em uma faixa sobre a cintura, tambores com o formato de olhos, de diferentes tamanhos.
Pessoas não binárias, intermediários, mensageiros e desgarrados são por ela protegidos, anonimamente. Isso acontecerá por mais uma metade de século, até que o seu culto se torne popular. Apesar disso, o nome dela, aquele que é genuíno, pessoal e intransferível, ninguém nunca saberá.
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Todo vermelho era ele, do cabelo à timidez. Absorvia o que de rubro havia no ambiente, como um catalisador de determinada frequência óptica. Algumas pessoas caminham por aí a roubar o que a outros pertence — e eu, consciente da sua totalidade e dos seus talentos, não conseguia parar de observá-lo.
À altura dos vinte anos, ele acompanhava uma mãe-possível-madrinha — neta de Olga Veiga — no despertar da sua quadragésima sétima adolescência, a procurar na saia, no vento produzido pela saia enquanto ela girava em frente ao espelho, uma condição 3física já inexistente.
A gente vive para carregar os pedaços mortos do corpo, fazendo de conta que eles estão vivos. Botox, lifting, peeling e rejuvenescimento a laser estão aí para comprovar o que eu digo. Com eles, esquecemos a pele escassa, o músculo fracassado, a celulite em desuso.
Isso sem contar a tecnologia da “permanência física indissolúvel no tempo” adquirida com exclusividade na clínica Sete Esferas, frequentada somente pelas muito ricas. Lá, ingere-se sete qualidades de alimentos por dia para que sejam perdidos sete quilos por semana e rejuvenescidos, ao longo de todo o processo, sete anos, sete meses e, obviamente, sete dias.
Sol nascente no centro da loja de disfarces femininos, o rapaz encimado pela cabeleira vermelha parecia ter nascido com a exclusiva função de tornar evidente a distância entre a mulher que rodava e a juventude. Parte sintética, parte natural, eu até dançaria com ele, ainda fresca e morna, embora estivesse a caminho da morte estratégica que nos afeta quando alcançamos os vinte e oito anos. Às habitantes de uma zona intermediária, apenas meio-respeito pode ser oferecido pela sociedade, diz a lei.
Aquelas que se situam na região pós-juventude são vistas como conteúdo de ataúde em diferentes estágios de decomposição; que comecem os julgamentos, as averiguações dos peritos!
Antes que meu fim estivesse próximo, eu o beijaria apressada com meus lábios falsificados, em uma tentativa de me aproximar da sua força inata de homem-menino que perdura até os cinquenta e quatro anos. Tem quem ache graça desse atraso favorecido pela providência divina, demora-se mais para amadurecer. Dizem que os homens congelam no tempo, isso é coisa da mãe natureza.