O silêncio de um latido
Ter um bicho de estimação marca muito da experiência de uma criança com o mundo. O contato cotidiano com aquele estranho outro que não partilha de sua linguagem ou de sua percepção dos eventos, priorizando diferentes recursos sensórios, é um desafio formativo curioso. Compreender que um cachorro quer carinho ao se lançar contra o chão e colocar a barriga para cima é a parte mais simples; o complexo desta relação surge aos poucos quando demandas mais intrincadas surgem da parte do estranho outro tentando nos comunicar coisas que passam completamente inteligíveis para o seu interlocutor. Talvez por isso alguns cães apreciem tanto a companhia de seus pares caninos.
Esta barreira comunicativa é trazida pela estreante Júlia Grilo em seu romance Cães. Num relato fictício onde a barreira entre fantasia e realidade se misturam, a autora coloca como protagonista a cadela Cafeína, cachorra adotada por sua família na vida real. Numa toada ao estilo Pinóquio, Cafeína revolta-se contra a sua condição submissa de cadela, partindo numa jornada por transformar-se em humana. Sendo cachorra, e portanto não partilhando da educação formal dos humanos, Cafeína desconhece o fato de que também aquelas criaturas gozando de maiores privilégios são também animais, guardando alguma bestialidade dentro de si.
A prosa de Júlia Grilo é comovente. A narradora em primeira pessoa conta a ascensão espiritual de uma cachorra enquanto abre a bestialidade de si própria e de seus iguais. Remetendo, por vezes, ao estilo de Elena Ferrante, o texto aponta para os grandes pactos sociais a que todos assinamos ao nascer, antes de alfabetizados, e concordados como sendo naturais. As vítimas destes contratos invisíveis são postas na trama, como a mulher dona da cadela mãe de Cafeína e a mulher negra no papel da própria narradora. A potência do relato volta-se até mesmo para esta estranha naturalização do processo de subserviência materna. Mas estes são coadjuvantes da grande estrela da narrativa: Cafeína.
Ponto alto da trama, a fuga de Cafeína da casa de infância da narradora serve de pretexto para explorar este complexo de Pinóquio da cadela, assim como para analisar organizações sociais vistas por uma perspectiva invertida: a das bestas.
Na rua, Cafeína encontra o encantador vira-latas Babilônia, o símbolo de uma liberdade desejada por ela e imaginada passível apenas àquele estranho outro, o humano. Um primeiro contato com o uma figura do mundo externo ao lar da família humana que a acolhia não poderia ser melhor pontuado do que com uma personagem de nome mais sugestivo.
Tentando alçar a uma grandiosidade inalcançável sem compreender uns aos outros, sem darmo-nos ao trabalho de compreender o lugar dos outros, derrubamos nossa torre voltando ao início de toda empreitada. Ou seja, não alçamos, decaímos.
Em suas perambulações pelas ruas, agora sozinha, Cafeína depara-se com uma matilha, apresentada com sua devida organização, comandada por uma cadela, Nia, a quem os cães do grupo se voltam em busca da compreensão do que fazer, como fazer. Tal como o lar da narradora, nem por isso deixa de haver rusgas e trocas de latidos, mostras de caninos.
Tênue a demarcação do que forma o humano, mais ainda a demarcação de sua superioridade. Chamada, carinhosamente, de lobisomem pelos pais durante um período insone de seu início de adolescência, a narradora-personagem atira-se selvagemente contra eles. “A apresentação de uma menina tão pequena e tão agressiva fazia de meus pais barreiras contensoras a podar-me as expressões”. A menina que atira-se latindo, raivosa, contra a grade do mundo, contida com uma coleira do que filósofos dizem ser o que nos separa da animalidade: a linguagem. A linguagem selvagem aproxima a narradora-personagem de Cafeína. O silêncio aproxima Cafeína da humanidade.
No fim das contas, humano é quem abre o portão. Parece que Cafeína o entendeu.
Yves São Paulo é doutorando em Filosofia pela UFBA/Fapesb. Editor da Revista Sísifo desde 2015. Autor do livro A metafísica da cinefilia (Editora Fi, 2020).