As Estalactites dos Meus Olhos
Foi ali. Foi exatamente ali o local da morte. Sem planejar, caiu abduzida por um congestionamento de suas artérias. As alfaias silenciaram. Lucinda havia chegado ao seu ponto final. O velório estava cheio. Ouvia-se de longe berros descontrolados da fina classe alta pernambucana, agora portando máscaras KN95. Pobre Lucinda, agora sem mais tempo, deitava-se sob um busto de flores, ocupando rigorosamente toda a superfície de seu novo lar. Apresentava-se aos transeuntes com um sorriso, quase enigmático, costurado sob encomenda pela funerária. Alguns dos presentes indagavam em ínfimos decibéis sobre o motivo da morte; outros, deixavam litros de estalactites de compaixão, na tentativa de atestar sobre a santidade de Lucinda.
O padre, demorava a chegar. Fazia se necessário o atestado de óbito para dar início aos trabalhos. A logística do enterro estava quase pronta, mas faltava Lucinda. Faltava a Família Cavalcanti derramar suficiente cloreto de sódio no peito florido de Lucinda para que tudo pudesse ser processado, como num download de um PDF. Estavam prestes a dar quatro horas da tarde. Considerados os índices de umidade tropical, as moscas começavam a invadir o recinto. Voavam livremente e pareciam preferir pousar no amarelado nariz de Lucinda, em suas mãos, para então alcançar os abundantes lábios de botox das madames, as quais, com tamanha indignação, tangiam os intrusos seres dali.
Por último, chega um membro do clero. Para a surpresa de todos, o Bispo da cidade, Dom Vital. Achou-se que seria o pacato Padre João a celebrar as últimas palavras para Lucinda, mas eis que entra o idiossincrático bispo em seu uniforme sacro, exercendo autoridade. Os filhos e irmãos de Lucinda retorcem o pescoço; apenas os desconhecidos partem em direção a um cumprimento. Dom Vital, carregando sua pompa, aproxima-se da protagonista, diz-lhe ao ouvido algumas palavras, e, em regime de abundância, faz naufragar a testa de Lucinda com suas estalactites. Os presentes emudecem. As moscas, de sua insistência, dão uma pausa.
Lucinda, nada fala, nada vê, nada faz. Apenas adentra no mangue do inconsciente coletivo dos presentes. Navega numa jangada de culpas alheias, de subterfúgios que ela jamais haveria imaginado. Boa é a morte. Libertar se, afinal de tentativas, de excessos de falsos existires. A presença de Lucinda nesta dada tarde haveria de ressuscitar.
por Caroline Costa