Entrevista com Ana Elisa Ribeiro
De poeta para poeta, um bate-papo com a professora, escritora e poeta mineira que tem uma história surpreendente com o mercado editorial, transitando por várias editoras nacionais.
Entre a literatura e a academia, que são os dois pilares da sua vida, a poesia é a base da maioria de seus livros já publicados. O Fabrício Carpinejar postou uma vez em seu instagram a seguinte frase: “Poeta não é quem escreve livros, mas quem lê pessoas”. Você é uma das poetas da atualidade que conheço que mais publicou livros de poesia além dos acadêmicos, infantis e em prosa literária. De forma geral, como você planeja ou organiza sua produção escrita? Em que momentos a poesia aflora mais que as demais escritas? Só pra tretar, você concorda com o Carpinejar?
Obrigada pelo papo, Isa. Você tem razão em dizer que literatura e academia são os pilares da minha vida no sentido do trabalho. Levo as duas coisas a sério, elas gastam boa parte do meu tempo de vida e pagam meus boletos. A poesia começou antes porque isso geralmente vem com a gente da infância e da adolescência, antes de escolhermos o trabalho que deve nos sustentar na vida adulta e mesmo nos importunar bastante. No meu caso, o amor pela escrita e até certa dependência dela me fizeram escolher tudo o que veio depois. O mundo é muito chato, temos muitas chances de ser infelizes na vida, o tempo todo, então eu pensava que uma coisa desse tamanho, a profissão com a qual eu teria de conviver por décadas a fio, tinha de ser pelo menos razoável. Descobri que dava para viver falando de texto. Mesmo que não seja plenamente possível viver da escrita, menos ainda da escrita literária, é possível chegar mais perto, alhear-se menos dela, então escolhi fazer Letras, fui sendo professora, trabalhei em editoras, essas coisas que sempre me aproximaram da leitura e da escrita. Não é assim tão simples. A leitura e a escrita são desafiadas o tempo todo, tudo facilmente engole essas atividades, que são pouco reconhecidas como trabalho, mas, esperta com isso, vou me protegendo e conseguindo escrever, publicar, etc. Publiquei oito livros de poesia em 23 anos. Não é tanto assim. Mas publiquei muitas outras coisas. Talvez eu tenha publicado mais trabalhos acadêmicos do que literatura, mas de fato os tempos de maturação, escrita e publicação são bem diferentes. Gosto dos dois do mesmo jeito. A literatura vem num ritmo mais lento, mais pensado, num esquema associado à ideia de publicar, o que também é uma paixão minha: a edição. É um dos meus temas da vida, inclusive na pesquisa. Então ficou tudo misturado. É claro que sei que sou uma pessoa que pôde escolher uma profissão. Mas já que era possível, decidi fazer dela um tempo de produção e alegria. Procuro gastar meu tempo no meu escritório, lendo, estudando, fazendo mil coisas das tarefas de professora, entre elas a de escrever. Invisto muitas horas por dia na frente do computador trabalhando em textos, sejam acadêmicos ou não. Minha organização é simples hoje porque meu filho já é adolescente, relativamente autônomo, foi criado por mim... sabe o que isso significa; e meu namorado não mora comigo. Isso me deixa em uma situação confortável para decidir o que fazer com minhas horas. Não sou mais de rua, nunca fui botequeira, não gosto de tv, etc. Veja que vai ficando fácil. Tenho conseguido proteger meu tempo de escrita, embora às vezes eu me sinta exausta. Carpinejar é bom poeta e sabe cunhar frases lapidares. Acho que poeta é quem escreve poemas, mais objetivamente. (risos)
Ana, seu último lançamento foi o Dicionário de imprecisões, pelo selo Leme da editora Impressões de Minas. Um dicionário poético, eu chamo de emocionário poético. Já que estamos falando de um verbete literário com conceitos e definições. Como você definiria esse livro? Como foi a escolha dos verbetes? Por que não entrou o termo impressões no verbete, já que a obra tem muita metalinguagem com os termos do meio editorial, além do nome da editora ser Impressões e o termo impressões ser abstrato como os outros léxicos do verbete?
Eu adorei esse nome que você deu a ele. Obrigada, aliás, pela bela resenha. A ideia foi num papo com meu filho, quando ele reclamou de um dicionário que teve de consultar. Era aquela coisa: a definição do dicionário não definiu nada, ele saiu do mesmo jeito que entrou. E rimos daquilo, pensamos em outras experiências assim e eu tive o clique: vou escrever um dicionário de imprecisões, assumido. Eu precisava dessa ideia porque já tinha aceitado um convite da Impressões de Minas para fazermos algo juntos. Eu já fazia com eles o planner, né? Mas livro ainda não. E aí liguei pro Wallison e disse: “ó, já tive a ideia. Logo entrego”. E passei a fazer duas coisas: escrever verbetes-poemas e adaptar poemas para que fossem verbetes. As palavras vinham como queriam. Não fiquei escolhendo palavras. Não quis propriamente contemplar ninguém nem nada. Fui deixando as palavras rolarem. Pensava numa canção, daí vinha o verbete; acontecia uma coisa qualquer, vinha o verbete; etc. Assim o livro se formou. Decidimos que teria ilustração e fomos desenhando o projeto gráfico, eu, Elza e Wallison, em diálogo o tempo todo. Foi muito legal, leve, tranquilo. E a gente sabia que estava fazendo um livro total, uma coisa diferente, um produto redondo. Saiu a primeira edição em 2019, a gente vendeu rápido, então decidimos rodar uma segunda em 2020, antes da pandemia. Aí resolvemos mudar tudo, papéis, cores, e inserimos mais dois poemas. Foi assim, sem muito ensaio.
Você já transitou por vários gêneros textuais, do infantil, biográfico, histórico até o científico, o que você não experimentou ainda e se aventuraria? Já teve alguma proposta de projeto literário que você recusou e por quê?
Eu gosto de encomendas, acho desafios bacanas. A maioria dos contos que publiquei foram encomendas, geralmente para projetos fechados, tipo: comemoração dos 50 do Renato Russo, comemoração de sei lá o quê do Raul Seixas, etc. O mais recente é sobre a pandemia, com um timaço de escritores, pela Academia Mineira de Letras e pela Autêntica. Então vou experimentando essas coisas. Pelo menos três infantojuvenis meus foram encomendas abertas, do tipo: você tem algo aí pra mandar pra gente? E eu sempre tenho. Se não for o livro, é a ideia. Ó, tô com esta ideia, o que acham? E geralmente me dizem: manda ver, faça! Recusei recentemente participar de uma coletânea de contos sobre um artista que não conheço, então ficaria esquisito ou eu teria de estudar muito para saber dele, decidi deixar para lá. De vez em quando recuso algo assim, uma antologia, etc. porque não dá tempo de ficar procurando textos, selecionando, etc. Mas quando dá eu gosto de atender. O que não consegui ainda foi escrever romance, que é o gênero xodozinho das editoras grandes, né? Isso ainda não deu porque preciso de um tempo contínuo de escrita que ainda não rolou, mas vou treinando com os contos.
A produção poética contemporânea, hoje, tem despontado nomes, alguns de BH inclusive, que só vão ser de fato reconhecidos pelo grande público quando ganham algum prêmio literário de peso. E a partir daí que as editoras grandes buscam publicá-los, mas antes são as pequenas editoras que lançam de fato essas obras. Esse é o caminho natural de um escritor ou poeta iniciante? Quais outras alternativas fora do circuito das grandes premiações que possam ser seguidos?
Essa trajetória é comum sim. Lançar por editora pequena é uma coisa ótima e muito contemporânea. Não tinha tanta editora assim trinta anos atrás, muito menos editoras que bancam o trabalho de poetas. É mais comum hoje. Mas autopublicação, etc. sempre foi um caminho. Mesmo esses consagrados estelares tipo Drummond começaram assim. Prêmio também sempre foi uma via. Muita gente que tá na cena há mais tempo ficou mais visível ganhando prêmio. Houve prêmios bacanas, como o Nestlé, que acabou faz tempo. Hoje temos aí o Minas Gerais, o CEPE, o do Paraná, o Sesc, para dar alguns exemplos de prêmios que buscam textos originais, isto é, ainda não publicados em livro. Para livros já publicados temos aí os prêmios Rio, São Paulo, etc. além do tradicional Jabuti e do internacional Oceanos. Veja que a cena é mais complexa. E se as pessoas estão para jogo, podem concorrer. Ganhar prêmios assim é um impulso, claro, mas é bom lembrar que pode não ser determinante. Há ganhadores de prêmios que sumiram, ninguém nunca mais viu. Nem todo ganhador de prêmio vai parar em editora grande. E assim vamos. As editoras grandes hoje são poucas e na verdade são conglomerados multinacionais. Quem vai mesmo resolver o problema são as médias e pequenas (a maioria é micro). É importante a pessoa ter uma noção disso para evitar grandes frustrações. Ou para saber que funciona de certo modo. É claro que iniciantes costumam não saber ainda, mas saberão logo, se estiverem atentos/as. Acho cá comigo que é importante sustentar a coisa. Escrever sempre, aprender sempre, entrar em cena quando dá. Quem quer pode espiar circuitos como o dos slams, saraus, que é outra órbita interessante. Ou ver o pessoal das cartoneras, etc.
É preciso apresentar a poesia e deixar que ela faça o resto, e que as pessoas se abram para ela. Fórmula... não tem.
O Brasil é um país de poucos leitores, os literários é uma parcela menor ainda, já a poesia, dizem alguns que é para poucos. Você é autora de várias obras poéticas, como enxerga o público que lê e adquire suas poesias, um público formado por qual perfil? Qual o recado você deixa para quem ainda tem receio de ler poesia. Por onde começar a ler poesia?
Pouca gente lê minha poesia. Talvez o público delas sejam meus pares. E isso acontece assim desde sempre. Para sair disso e chegar a um grande público, amplo mesmo, é preciso alcançar, por exemplo, as escolas. Não é simples. Imagine chegar a um ponto que as pessoas sabem seu nome, sabem de você, mesmo sem terem lido nada de sua autoria... Isso acontece todos os dias com Drummond, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, etc. São mais que autores, são discursos, são entidades literárias. Os livros deles e dela são constantes em catálogos de editoras que os disputam. Mas chegar nisso é algo raro. Quem me lê hoje é uma galerinha de escolas que trabalham com alguns de meus títulos; meus pares na poesia e na prosa; talvez algumas pessoas assinantes de clubes de leitura. São pessoas que estão antenadas na literatura contemporânea. Quem não está antenado nisso não fica sabendo de nada. Literatura ainda é algo distante do dia a dia para muita gente, coisa escolar, autores e autoras que caem na prova. Não é algo assim que interesse imediatamente. Quando morre um escritor ou uma escritora (e na pandemia foram vários), muita gente vê aquilo no jornal e nem pisca. Não faz ideia de quem era, do que escreveu. De vez em quando alguém comenta: ah, esse cara é o autor do livro que li pro vestibular, em 1996! Mas nem tem mais lista de vestibular, então as pessoas não terão mais sequer isso para se lembrar. Comecei a ler poesia bem jovem e me interessei por ela. Não foi família nem professor que me fizeram gostar. Eu gostava de palavras, da língua portuguesa, então achava impressionante aquela coisa do verso, da expressão. As pessoas têm relações diferentes com essas coisas. Quero crer que eu possa influenciar meia dúzia de pessoas a gostarem de poesia. Uma boa mediação pode ajudar, embora não garanta. É importante conhecer poesia, saber de vários jeitos de ser poeta, de escrever poesia e ir apresentando. De repente alguém saca que gosta de Leminski e não de Castro Alves. Aí a ideia do que é poesia se fragmenta, se espalha em cacos que a gente escolhe catar uns e outros, não. É preciso apresentar a poesia e deixar que ela faça o resto, e que as pessoas se abram para ela. Fórmula... não tem. Quando a gente gosta muito de uma coisa... tem vontade de que todo mundo também goste. Eu me frustro menos quando me lembro de que nunca conseguiram me fazer gostar de matemática. E há quem jure que é uma delícia, uma maravilha. Não dá. Então eu procuro exigir menos de quem é diferente de mim nesse sentido. Mas não deixo de tentar.