O Enterro de Maria Dolores
Segue uma estrada vazia, castigado pela quentura seca, disseram que no meio do ano era verde e bonito, mas não era meio do ano. É trabalhoso satisfazer o último pedido de uma velha moribunda.
Passa a placa de bem-vindo e adentra a pequena cidade. Certidão de óbito, documentos e encomenda na caçamba. Teria que encontrar o cemitério, perguntar do jazigo, passar pela burocracia e finalizar a entrega. Metade do pagamento na ida, metade na volta.
A curiosidade acompanha o carro desconhecido, tudo é bem menor do que imaginou, um monumento com o nome da cidade, chão de calçamento, um apertado de casas coloridas e igreja. Para na praça de árvore solitária e pergunta onde fica o cemitério, o homem joga a vista no carro, pela madeira com a palavra frete escrita em tinta branca, a lona cobrindo a caçamba, olha o motorista e se vira. Aponta para a igreja. Fica bem atrás, ele diz. Passa a primeira e segue para o cemitério atrás da igreja. O terreno não tem muro, mas tem portão de entrada, e tem gente lá dentro.
A pessoas estão em volta de algo. Vai se aproximando, há um tipo de alvoroço. Tenta enxergar o que está no meio, um homem aos berros, a multidão parece concordar.
Uma frase chama sua atenção, Maria Dolores nunca será enterrada nessa cidade!, grita o homem no meio do círculo. Ele puxa um dos observadores.
“Quem é aquele homem?” A pessoa diz que o ruivo de cara redonda, o Jerimum, é o homem que trouxe a lápide. “Não, esse não, o outro, o que tá falando, o de bigode.” O homem aperta os olhos até ficar com a definição perfeita do forasteiro. Aquele é Seu Pires, o prefeito. Não agradece e abre caminho em direção a Seu Pires, empurra quem estiver no caminho. O Povo bate palma e Seu Pires faz um sinal pedindo silêncio. E no silêncio do povo:
“E porque Maria Dolores não pode ser enterrada aqui?”
Cerca de vinte pessoas olham em volta, caras fechadas e mãos na cintura. Quem é esse? Quem Gritou? Ele vai passando até ficar perto de onde o prefeito está.
“Você né daqui não, é?” Todos olham para ele. O sujeito é um corpo estranho, feito pedra debulhada do feijão.
“Não Senhor.” Responde a pedra. Seu Pires faz questão de olhar um por um, e balança a cabeça.
“Então, essa é uma cidade bem pequena, todo mundo sabe, fica longe da estrada principal, todo mundo sabe, só vem pra cá quem quer chegar aqui. Então me diga, meu rapaz, me diga o que ninguém aqui sabe. O que tu tem a ver com Maria Dolores?”
O forasteiro aponta a caminhonete estacionada. “Um enterro.” O prefeito empina o queixo. “Sabe, eu trabalho com frete, Maria Dolores tá ali na caçamba.” A multidão solta um ohhh, alguns ôxe!, três vôte e um comé a história hômi? O prefeito levanta os braços e tenta acalmar os ânimos, põe as mãos na cintura e se volta para o homem.
“Tu tá dizendo que tem um defunto no teu carro?”
“Tô.”
“É esse defunto é Maria Dolores?”
“Ela disse que era.”
“E tu fala com defunto, é rapaz?” Tinha a infantilidade típica dos homens brutos, e a galhofa dos demais confirmou que eles também. “Conta essa história direito.”
“Ela me contratou pra enterrar ela aqui.”
“Ela Maria Dolores?”
“Sim!”
“E o senhor tem agência de turismo pra defunto, é?” A pedra permanece imóvel feito uma pedra. “Agora isso aqui faz sentido.” Aponta a lápide jogava no chão com o nome de Maria. “Pode dar meia volta meu amigo, essa aí num merece nada não.”
“Pelo amor de Deus, o que danado essa mulher fez? Enterre ela aí, me dê a papelada que eu vou embora e recebo o meu.”
“Que história é essa, meu rapaz? Ninguém aqui é besta, não!”
“Só sei de uma coisa. Uma velha veio atrás de mim perguntando se eu fazia transporte. Eu disse que fazia. Ela perguntou se eu fazia transporte pelo estado. Daí eu disse que dependendo do pagamento eu fazia até entrega internacional.” Umas risadas curtas na multidão. Se virou e começou a falar com o público que ia aumentando. “Então ela perguntou o tipo de carga que eu levava, eu disse que levava de tudo que coubesse na caçamba. Ela disse que já era velha e doente e o sonho era ser enterrada na cidade que nasceu, e ficou falando lá da vida dela, teve até hora que eu quase me importei. Olhe, só sei que aceitei o serviço, e o engravatado só me paga se a véia for enterrada.”
“Esse engravatado é o filho dela?”
“Advogado, ela disse que não tinha filho.”
“Volte e entregue essa rapariga pro advogado dela, então! Essa mulher é uma vergonha pra cidade, meu avô quando era prefeito expulsou ela daqui faz uns 50 ano, e jurou que ela nunca botava nem os pés na cidade de novo.”
“Enterra ela plantando bananeira, então.” A turma solta umas risadas e uma vaia longa. Se o caroá pode desabrochar naquele solo seco, talvez ele pudesse apelar pra sensibilidade do povo. “Meu amigo, entenda minha situação, eu tenho que pagar minhas contas feito todo mundo, eu sou só um trabalhador.”
“Ela mesmo não pagou a conta da igreja que ela ateou fogo.” Disse o prefeito com os braços cruzados.
“Ninguém pagou, a gente consertou com as próprias mãos.” A voz surge de trás da multidão e faz os corpos se afastarem até que ela chegue ao lado das duas figuras discutindo. Era uma freira velha, de olhar duro e gestos leves. “Que eu lembre a prefeitura não pagou nada. Aliás, eu lembro bastante da situação financeira da cidade na gestão de sua família.” Ele engole em seco.
“Não é preciso nada disso. Na época meu avô estava atolado com as dívidas do governo anterior.” Se volta para a pequena multidão. “Vocês sabem. A bandidagem do lado de lá.”
“Claro.” Ela olha o forasteiro e lê o que está escrito na lápide. “Com certeza é Maria Dolores. Posso saber o motivo dessa algazarra aqui perto da igreja?”
“Madre Soberana, com todo o respeito, primeiro chega essa lápide de total mal gosto, aí depois a gente fica sabendo que a remetente é a pior pessoa que essa cidade já viu. Eu não posso deixar que ela seja enterrada aqui, é uma falta de respeito.”
“A pobre Dolores já pagou pelos seus pecados, Seu Pires. Nos é ensinado que perdoar é divino.”
“Então a senhora faça isso na sua gestão, enquanto eu for prefeito eu mando aqui.” A madre chega mais perto.
“Manda mais que a representante de Deus?”
“Ele votou na senhora? A cidade votou em mim.”
“Ela mencionou o cemitério da cidade, meu filho?” A freira pergunta ao forasteiro.
“Ela só disse que queria ser enterrada aqui, não deu muita instrução não. Eu mesmo só preciso da papelada.” Ela para, pensa.
“Ela vai ser enterrada na igreja como todas as outras freiras”
“Isso é um absurdo!” Agora Seu Pires chicoteia o indicador em direção à velha freira. “Ela não vai ficar aqui, essa mulher humilhou minha família. Ela, ela…”
“Por favor, Seu Pires, não façamos uma cena maior ainda. O que o Senhor vai fazer? Brigar comigo? Vai bater em mim?” O prefeito respira pesado e acalma os olhares espantados.
“Hora! Claro que não, você sabe muito bem disso. VOCÊS SABEM MUITO BEM DISSO! Eu não bato em mulher, dona freira.” Se aproxima e toma as mãos da Madre, fala baixinho. “Eu não.” Ela mantém o olhar duro. “Eu, o prefeito, aprendi a ter misericórdia, Maria Dolores podia ser o diabo em pessoa, mas isso é passado. Agora está morta, que descanse em paz.” O prefeito chama Jerimum e pede que ele leve a lápide para o cemitério da igreja. “Eu teria bastante cuidado, Maria Dolores pode atrair a desgraça pra cima da senhora.”
“Ela?” O prefeito faz o sinal da cruz e se retira.
A Madre Superiora chama o forasteiro até a igreja para lhe entregar os papéis. Enquanto ela assina, algo ainda inquieta a cabeça do estranho.
“Ér… senhora freira, essa mulher fez esse monte de ruindade mesmo? Só a senhora parece gostar dela.” Mãos para trás, rosto sério, ela pensa e responde.
“É o tipo de coisa que você nunca irá entender meu filho. Minha empatia por Maria Dolores vem de algo anterior às suas ações. Mesmo discordando de seus modos, de certa forma, eu a compreendo. Sendo mulher e cristã nessa cidade, também nasci culpada.” Ele coça a cabeça, volta e se concentra em assinar os papéis. “Maria era uma menina difícil, desordeira, desobediente.” A Madre responde o que ninguém perguntou. “Foi mandada para a igreja e se tornar freira, coisa que ela recusava-se a fazer, fugiu várias vezes, ouvia ofensas de todo bom cidadão dessa pacata cidade . Até o dia em que apareceu grávida, afinal, que homem respeitável ousaria se deitar com Dolores?”
“Sei…”
“Daí, ninguém mais sabia o que fazer e ela acabou sendo escorraçada. Não posso nem imaginar tanto ódio sendo cultivado num coração tão jovem. Se o senhor não notou, ela fez questão que a lápide chegasse no cemitério da cidade, e não o da igreja, ela estava ciente dos desentendimentos que isso iria causar, e mesmo assim o fez.”
“Porque tá me contando essas coisas, Dona?”
“Sabe, eu convivi com Maria Dolores, ainda lembro…” Toca a cabeça com o indicador. “Pequenos traços, gestos.” O homem entrega os papéis, ela entrega o recibo e vai se dirigindo a porta. “Eu diria que o senhor é órfão e deve ter uns… o que? Quarenta e nove anos, correto?” Ele para, dá meia volta e tenta decifrar a expressão da serva de Deus. “Tanto frete por aí e ela escolheu logo você. Engraçado, não é?” Ele guarda os papéis, a boca mexe mas os sons não saem. Não se despede e fecha à porta.
A volta também será longa, aperta o volante e acelera o carro. Só é obrigado a parar nos quebra-molas na entrada das cidades, meninos vendendo castanhas e demais bugigangas.
“Quer castanha moço?” Não dá atenção aos meninos, se preocupa mais em ajustar o retrovisor. “E que tal umas flores pra mulher?” Contempla o pequeno retângulo refletindo toda a estrada que já percorreu. “Um paninho bordado pra sua mãe?” O carro estanca.
A Madre Superiora encara o caixão de Maria Dolores.
“Acho muito difícil alguém te decifrar, Maria. ” Entrelaça os dedos, se ajoelha, abaixa a cabeça. “Que Deus te guarde.” Começa uma reza enquanto segura o terço entre as mãos.
Três batidas fortes interrompem suas preces. Levanta-se com dificuldade, seguras as vestes negras e vai abrir a porta.
No chão, logo atrás, a lápide e seus dizeres:
MARIA DOLORES
Aqui jaz uma puta velha, não foi grande coisa, não constituiu nada que pudesse deixar de herança, somou arrependimentos, viveu tudo aquilo que lhe foi negado, riu, chorou, fodeu e sobreviveu até não suportar mais. Que seu prazer eterno seja saber que sua morada final é uma afronta a toda essa cidadezinha de merda.
*
Ícaro Medeiros de França. Nascido em 24/06/1987 em João Pessoa.
Paraibano de nome grego formado em Publicidade e Propaganda. É um designer daltônico, surdo do ouvido esquerdo, tem cuscuz como prato favorito, gosta de ir à praia sem entrar no mar, costuma lavar a louça escutando música, prefere comer a sobremesa antes das refeições e se considera um grande apreciador das pequenas, esquisitas e extraordinárias banalidades do cotidiano. Participou de algumas coletâneas, lançou seu primeiro livro de contos (Diálogos, 2019) pela editora Escaleras, posta poemas em seu instagram (@icaromef) através da #2rabiscos e publica contos regulares em https://medium.com/@icaromef.