Chiclete azedo
Dizem que o suicida está condenado à eterna repetição do seu ato final. A experimentar a morte infinitas vezes, encerrado para sempre em seu último instante de vida. Foi com essa convicção que eu decidi me atirar do décimo quinto andar do CFCH. Queria provar a morte como um chiclete azedo que não perde o gosto nunca. Um chiclete que, tão logo é tirado da embalagem e colocado dentro da boca, já não pode mais ser cuspido ou engolido ou mesmo grudado debaixo da cadeira pra ser mastigado depois.
Meu plano era bem simples: me jogar lá de cima de uma vez por todas, sem drama, sem parar pra dar satisfação a ninguém ou admirar a paisagem do Recife que, convenhamos, só faz você querer chegar mais rápido lá embaixo e provar que não tem inferno pior do que essa cidade. Dispensei o elevador e subi os quinze andares de escada sem derramar uma única gota de suor. Em compensação, salivava abundantemente. Sentia desde então o gosto de sangue e de chão que eu imaginava ter a morte daquela altura. Sentia o vento na cara, a sensação de liberdade que precede o impacto, todos os clichês daquela morte que eu vinha planejando pra mim há muito tempo e que era um suicídio bastante comum, pra dizer a verdade, mas muito melhor que passar a eternidade nadando com os tubarões de Boa Viagem ou atravessando a Caxangá de olhos fechados.
Imaginava que, assim que enfiasse minhas pernas no concreto e o concreto enfiasse minhas pernas no meu tronco, minha carne se rasgasse por dentro e meus órgãos e tecidos se estourassem como bexigas de aniversário cheias d’água, todo o meu corpo se implodiria de baixo pra cima e eu seria demolido como uma construção em ruínas, me achataria feito um anão patético, mas logo daria um jeito de me levantar e recolher meus escombros num outro plano, desviar da chuva de estudantes que estaria caindo ao meu redor e me preparar pra subir as escadas novamente.
Dessa vez faria, quem sabe, um caminho mais longo, me permitindo dar um rolê pelos andares daquele prédio fantasma, abrindo portas que dessem pra salas onde suicidas ilustres como Hemingway estariam se contorcendo com uma arma na mão, quem sabe lendo um conto meu e tendo mais um motivo pra colocar o dedo no gatilho e disparar incessantemente contra a própria cabeça. Ou Sylvia Plath, botando e tirando os miolos de dentro de um forno como uma cozinheira macabra, curvando-se e empinando a bundinha num suicídio que eu achava mórbida e machistamente erótico, que eu nem me incomodaria de ficar vendo se repetir diversas vezes diante de mim se eu não tivesse que cumprir a minha própria sentença perpétua: uma queda infinita que começaria agora, com um pulo, e se multiplicaria no além, irrefreavelmente.
Mas quando me joguei e me esmaguei lá embaixo, e me vi compactado numa massa disforme cuja imagem alguém muito bizarro compartilhou de imediato pelo WhatsApp, não foi só o meu corpo que a morte conseguiu desconjuntar por completo. Eu tinha literalmente quebrado a cara quando tirei a minha vida apostando naquele mito suicida de Sísifo. Porque minha queda, registrada por iPhones que surgiram do nada assim que tentei discretamente subir no parapeito do prédio, só estava fadada a se repetir realmente em looping no YouTube, onde o vídeo do suicídio chegou fácil às vinte mil visualizações, superando no dobro o de uma mulher que pulou de um edifício da zona oeste e provocou uma tragédia ainda maior que envolveu seu marido, morto depois num irônico acidente de carro, viajando justamente pro enterro da esposa.
Tive minha fama póstuma, mas descobri muito tarde que o chiclete azedo da morte tinha um sabor bem diferente daquele que eu esperava provar de início. Hoje posso finalmente avisar aos incautos que não é o ato final da morte mas o ato primeiro da vida que nós, suicidas, estamos condenados a ver passar nesse aparelho de DVD quebrado, rodando um disco arranhado que não avança além da primeira cena.
Meu último túmulo tem sido o meu primeiro berço: o ventre da minha mãe, meu cerne, no momento em que ela me expulsa da barriga num mês em que o Brasil perdeu uma copa quase ganha e eu nasci sob o signo nefasto do fracasso, de tudo o que poderia ser e não fui, de tudo o que eu fui e poderia não ter sido.
Por mais que eu tente apertar esse cordão umbilical que agora enrolo ao pescoço, no esforço vão de que uma nova morte, redentora, me salve do fardo pesado da vida, é o próprio diabo quem, de branco, me livra do enforcamento e sorri por trás de uma máscara de borracha, impede que me coloquem num caixão azul e me consagrem no paraíso dos pequenos anjos.
Eu choro, choro não porque me violentam, mas porque tenho plena consciência da merda colossal em que tudo isso vai dar. Porque sou privado da inocência quando chupo o veneno da tragédia do peito da minha mãe e ainda tenho que olhar nos olhos dela, vendo desenhar-se neles uma esperança tola de que tudo vai ficar bem, tudo vai dar certo, eu serei alguém no mundo e farei alguma diferença no futuro.
Atei as duas pontas da vida com o último fiapo de existência que me restava, num nó cego em que não sei mais como desfazer.
Até o azedo do chiclete perdeu o gosto.
Tiago Germano é escritor, autor do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018) e da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicado ao Jabuti. É mestre em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e fez seu estágio doutoral na University of East Anglia, na Inglaterra, por onde passaram escritores como Ian McEwan e Kazuo Ishiguro