30 de outubro de 2020

Tapera no escuro

Sou um leitor tardio, acredito. Comecei com gosto mesmo aos 17 anos, os 16 foram adubo: vieram Vidas Secas (1938), a poesia de Cruz e Sousa e Lima Barreto. Bruzundangas (1922) e Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) sulcaram a minha pele. No ano seguinte, quando estava no terceiro ano do ensino médio, chegaram Ana Miranda e todos os outros nove indicados para o vestibular da UFC. Não gosto de todos, mas nenhum deixou de me marcar. Foram nessas aulas também que comecei a aprender algumas coisas de literatura. Novela. Eu nem sabia existir esse gênero, pensei ser só coisa de televisão. Mas a minha professora era e é incrível, pois ainda está ensinando, agora no Instituto Federal, e ela trazia a complexidade do mundo literário para a nossa linguagem. Bom, eu gostava muito. Meus colegas, nem tanto. Digo que sou leitor tardio tentando me posicionar, é comum ouvirmos escritoras e escritores falarem de suas bibliotecas em casa, das leituras da infância. Foram algumas, mas todas incentivadas na escola. Tive o privilégio de estudar em uma escola particular e o acaso de cruzar com bons professores de literatura, e acredito, é aí onde está a importância. Tenho uma amiga do tempo da faculdade que adquiriu toda uma base de francês na escola pública, e a relação estabelecida com a professora a motivou para estudar mais e mais a língua. Imagine se tivéssemos, de fato, investimento na educação pública?

Em casa não tinha incentivo para ler. Meu pai tem muitos livros, mas a maioria de física e matemática, alguns do tempo da licenciatura em música, vieram após o bacharelado em física; e outros de esoterismo, ocultismo e umbanda. De literatura, acho, não tínhamos nenhum. Já minha mãe gostou de ler por um tempo, embora após a sua conversão evangélica tenha passado a desconfiar dos livros pelo título e capa, entretanto como Deus nem sempre é fel, ela tem voltado.

Aí, com as portas abertas pela literatura clássica, ou simultânea a ela, tinha vontade de ler outras coisas, como Senhor dos Anéis (1954), Harry Potter (1997, ao menos o primeiro) e outras fantasias incentivado pelo gosto pelo jogo de mesa e interpretação, o RPG. Mas ela não gostava nem um pouco, era tudo coisa do demônio. De qualquer forma, isso foi um impulso para a leitura. Não fui um leitor cult em toda a minha trajetória, e não sou até hoje. Também tive a fase dos vampiros e li André Vianco, não apenas um, vários.

Aqueles anos, principalmente dos 16 e 17, ficam sempre voltando. É uma leitura vivenciada por lá que me persegue. Não gostei, por exemplo, de O Mundo de Flora (1990) de Angela Gutiérrez. Era muito para a minha cabeça. Hoje, reconheço a importância e a criatividade desse romance, com seus vários caminhos narrativos, labirinto de prazeres e medos. Clarice Lispector não me parecia muita coisa, essa percepção embotada foi desconstruída poucos anos depois, para o meu bem. Aí junto essa memória com outra mania, uma mais ou menos assim. Estou fazendo qualquer outra atividade sem ser literatura, então me pergunto, do nada, “Fulana, fulano, já morreu?”. É uma indagação constante, as notícias aparecem, chocam e logo esqueço, ainda mais quando são sobre pessoas tão vivas como as artistas. Dessa vez o x da questão era Caio Porfírio Carneiro. E num é que ele morreu em 2017? Falando dele, minha professora ensinou existir a novela como gênero, citando Caio por ter se aventurado nisso, escrevendo Bala de Rifle (1963). Sempre quis conhecer a tal novela, mas nunca a encontrei em lugar algum. De Caio só li Trapiá (1961), listado para o vestibular. Li uma vez, ou duas no máximo. Lembro bem das histórias, das personagens sertanejas, de cada conto formando um todo relacionável, podendo ser lido como romance contado.

E eu me pergunto, por qual razão Porfírio não é melhor editado? Tantas e tantos outros autores que ficaram lá atrás, mesmo com seus prêmios e leitores em vida. E quem não conseguiu furar a barreira do mercado editorial, não ganhou prêmios, fica soterrado? Não, eu espero. Pois como a minha professora de literatura, sei da existência de tantas e tantos outros trabalhando para restituir a história de tanta gente obliterada pelo poder, escritoras e escritores negros, mestres da cultura, narradores autores indígenas. Ainda bem que algo sempre ainda passa, e a literatura é uma força.

Que vem.

E é tipo um chamado. Talvez até místico, e como todo mistério envolve paixão é importante estarmos atentos, embora muitas vezes nos encontremos submersos nesse mundo. Foi com desejo de ler mais Carneiro que busquei suas obras para comprar, a novela ainda permanece perdida por aí, e nessa andança virtual caí em um conto, talvez microconto do escritor. Se chama O orador. É a narração de uma pessoa se deparando com um sujeito que gesticula e grita. Ao seu redor, as pessoas estão enfeitiçadas pelo discurso, capturadas pela palavra do homem sem Bíblia na mão. Não era desse tipo de pregador. No final do conto, o narrador, finalmente, se aquieta para ouvir o discurso do orador, se misturando à multidão. A literatura pode ser isso. Pregadora messiânica, nos captura em suas palavras, jogos, metáforas e nos faz acreditar em coisas que, com um pouco de atenção e uma escapada desse jogo, logo descobrimos não ser verdade. Afinal, não seremos imortais [aliás, a quem é dado o direito de ser imortal?], não seremos diferentes por jogarmos com as palavras. Precisamos estar atentos a isso, nessa mágica da literatura, algumas vezes o crucial vai ser estar no rebanho, ouvindo a pregação, e em outras o essencial será derrubar as barracas, invocar o diabo e chutar os púlpitos lembrando que, por ser demasiada humana, a literatura está repleta de armadilhas e contradições.

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hermes de sousa veras é antropólogo e escritor. Nasceu em Fortaleza, Ceará e já morou em Belém do Pará e Porto Alegre. Atualmente conclui sua tese de doutorado em Ananindeua, região metropolitana da Grande Belém, metrópole amazônica. Tem contos e poemas publicados em revistas e suplementos literários, faz parte do time de poetas da Fazia Poesia e administra o perfil de minicontos @viu.eitanem. Em 2020 foi selecionado para as antologias Orifícios Políticos (conto, editora Gosto Duvidoso) e Quantos players hoje - poemas do arcade ao console (poesia, Patuá/Fractal).