Entre livros e sentimentos, um verbete precisamente poético
Dicionário é um verbete que usamos esporadicamente para consultas. Tirar dúvidas sobre conceitos ou definições incertas. Definições incertas...é o que propõe o livro Dicionário de Imprecisões, de Ana Elisa Ribeiro, cuja primeira edição foi lançada em 2019 pela Impressões de Minas. A segunda edição, lançada em 2020, é ampliada com novos verbetes também traz um novo design.
Ana Elisa é poeta, linguística, afeita aos cuidados com o uso da palavra, do seu sentido exato, mas quando depara-se com aquelas que não tem como ser matematicamente conclusiva à guisa de uma definição sustentável, é preciso recorrer à máxima que a licença poética permite oferecer. Saudade, por exemplo, é o único termo que só existe na língua portuguesa sem traduções cabíveis em outras línguas, está claro o seu teor impreciso, difícil de explicar, mas de sua natureza sensitiva apenas a poesia pode ser capaz de fazê-la. Afinal, no livro foram três tentativas em definir a palavra saudade, a poeta ainda mostra que nem o Priberam dá conta do recado, o que dirá o coração de poeta?
Por essa seara dos sentimentos que trafegam os verbetes, numa clara e hercúlea aterrisagem de suas viagens reais ou imaginárias pelos bosques das ficções, tal qual Eco já o fizera. Na obra, Ana Elisa tenta ampliar a noção conceitual das visões de certos conceitos, que em sua maioria são tão próprios da subjetividade humana.
A autora não resume a obra apenas aos verbetes que tratam de questões abstratas da vida, ela não foge ao seu próprio universo autoral, apresenta ao leitor a linguagem metaliterária, apropriando de verbetes que falam do próprio objeto, o livro.
O livro, Dicionário de imprecisões, revela-se um emocionário de palavras incomuns, a incompletude humana na busca pelas melhores definições. Ana Elisa imprime nessa obra as lições de Umberto Eco, em a Obra aberta. Mas também não fecha em si o que para outros etimologistas esses conceitos poderiam ser refutados, o dicionário se mostra inconclusivo, uma lista interminável. A poeta extrapola a noção de gênero, hoje entendemos que não existe mais só masculino ou feminino, o gênero também se diversifica, é expansível, e o dicionário também deveria ser da mesma forma, neste sentido que ela procura mostrar as classificações morfológicas de alguns termos.
Com uma leitura atenta pode-se notar a crítica à normatização, Ana é um estudiosa, pesquisadora e professora universitária, sempre às voltas com grandes discussões que envolvem conceitos como o “o que é livro?”. No dicionário ela traz essa problemática fora do contexto científico, e mostra que não há um consenso, pois o objeto se tornou tão controverso pela sua forma impressa e digital.
A obra confronta com a dialética de não ser o dicionário um livro exato, mas que cabe muito mais às possibilidades infinitas de definições, e vai por um percurso muito além de um reducionismo dos conceitos. Há dicionários e dicionários, os mais diversos, sejam temáticos ou não. Ana Elisa utiliza de alguns deles na obra de forma metalinguística como o Priberam e o Dicionário do livro (Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão) para apresentar o conceito de colofão, elemento paratextual de um livro. A inovação trazida pela autora é este dicionário poético, incomum à literatura quando não se trata de um vocabulário lexical de obras literárias específicas como Grande Sertão Veredas em que são elencados os neologismos criados por Guimarães Rosa.
Publicado pela editora Impressões de Minas, pelo selo Leme, com um projeto gráfico bastante delicado em seu conjunto, são 50 verbetes intercalados com ilustrações de Wallison Gontijo impressos em papel vegetal na cor do miolo em azul e branco. A capa em papel Aspen com um brilho que imita o prata que sob a luz reluz as letras em alto relevo do título. A lombada imprime o alfabeto com a falta de algumas letras que não possuem verbetes na obra. As lacunas de uma obra aberta, que posteriormente podem vir a serem preenchidas numa segunda edição. E diga-se de passagem, oportunamente que, a própria autora já anunciou a segunda edição no início da pandemia deste ano de 2020, com projeto novo tanto gráfico quanto editorial.
Algumas considerações observadas na obra como a letra i que aparece em destaque três vezes, na capa, na segunda orelha destacável para marcador de página e na folha de guarda, nota-se a ausência da palavra impressão, tanto em seu sentido literal como vocabulário do meio editorial como de expressão ou modo de perceber alguma coisa além de ser uma metalinguagem ao próprio nome da editora da obra. Outro ponto paratextual é a capa impressa em um papel muito maleável, não se mantem firme por muito tempo, e o manuseio constante o deixa bastante danificado, diferentemente de um dicionário como um objeto de uso para consultas. Na contramão da ideia de um dicionário léxico, a proposta aqui é de um dicionário possível de ser lido na íntegra e não de folhear apenas em busca de um verbete específico.
Ana Elisa não se formou em literatura, mas em linguística, sua familiaridade com o objeto dicionário/verbete e constituição do léxico da língua portuguesa, mostra o quanto consegue destrinchar por meio da poesia esse objeto bibliográfico que se encontra obrigatoriamente em qualquer estante bibliotecária, seja escolas, faculdades ou até mesmo estantes particulares. O dicionário, desde sempre, fez parte do enciclopedismo e foi um dos livros mais presentes nas casas depois da bíblia. Dicionário e Bíblia são livros volumosos, de muitas páginas e um leitor comum jamais o leria por completo. A autora faz esse pequeno apanhado léxico impreciso como a nossa segunda bíblia, possível de ser lido, um livro sagrado e íntimo de cada um, com suas indefinições sobre Amor, Saudade, Carinho, Filho, Paixão etc verbetes atinentes ao ser humano. Assim como a bíblia e o dicionário da língua são obras essenciais e indispensáveis nas nossas estantes, e o Dicionário de imprecisões vem com essa missão.
Dicionário de imprecisões. Ana Elisa Ribeiro. Impressões de Minas, 1ª ed., 2019. 125 p. il.