O futuro vivido aqui e agora
O escabroso tema da ditadura militar no Brasil (1964-1985) tem voltado à pauta de nossos escritores, cada qual abordando-o sobre um enfoque. Há livros publicados recentemente que abordam o período pela ótica dos oprimidos, outros investigam a atuação da luta armada de reação ao regime militar, outros ainda devassam momentos nebulosos do Estado de exceção, e há ainda aqueles que o inserem como mero pano de fundo de situações existenciais vividas por protagonistas dentro daquela ambiência de opressão. Mas como foi acontecer tal monstruosidade? O que possibilitou uma coisa daquelas que até hoje germina frutos podres?
“Memórias de um triste futuro” - romance de autoria do senhor William Soares dos Santos, que é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e escritor com vários livros publicados, é obra publicada recentemente pela editora Patuá. Lemos no texto da orelha da obra, assinado pelos editores, uma pista de como o autor arquitetou sua obra: “Através de um texto que se constitui por meio do alinhavar de diferentes histórias de personagens sem nome, somos apresentados a situações de violência e desumanização perpetradas sob os auspícios do Estado, seja no contexto institucional, seja no ambiente restrito da família. Durante toda a narrativa, a violência é um moto sempre presente. Ela pode até ser elemento central nos porões da ditadura, mas se esparrama, também, no lar do dito cidadão de bem.” Com efeito; a obra é dividida em 13 capítulos, cada qual estruturado de forma tal que pode ser lido em qualquer ordem que se queira – e isto é inclusive informado ao leitor na abertura da obra - , entretanto esta subversão do arcabouço formal do romance, não lhe tira um mérito inquestionável que a nosso ver, coloca a obra em um patamar de investigação e compreensão do “fenômeno” da ditadura militar poucas vezes alcançado em obras com esta temática. Antes façamos algumas considerações preliminares importantíssimas.
Somente a ignorância pura e simples de nosso passado, ou a conveniência ou mesmo a burrice agressiva pode conceber que os males que afetam o Brasil hoje seja obra exclusiva da ditadura militar. Por outo lado, não podemos negar também que, se algum mérito houve em tal regime, foi o de aglutinar e condensar em práticas instituídas legalmente, a intolerância, a violência, o embuste e a solidificação de interesses de grupos e não do coletivo. Ocorre uma complexidade maior em nossa história.
Há cerca de um ano, escrevi em uma resenha de livro com temática semelhante: A República no Brasil tem sido uma noite repleta de pesadelos. A título de lembrança, recontemos em apenas um parágrafo, parte significativa de nosso período republicano. Não é demais. Se por um lado somos um povo muito, muito ‘cordial’, por outro, temos uma memória curtíssima. Muito bem; depois de proclamada a República – 1889 (salientando que a abolição da escravidão se deu um ano antes 1888 -, seguiu-se o período da República do café-com-leite, (paulistas e mineiros alternando-se na Presidência), depois a quartelada (desculpem!) da Revolução de 30, depois o tal do Estado Novo (1937 a 1945). Seguiu-se breve e inócuo ensaio de democracia, de 1945 a 1964 com direito a suicídio de ex-presidente (Vargas), renúncia de outro (aquele com uma cara de doidão e que tinha como jingle de sua campanha a musiquinha "Varre, varre, vassourinha...", para varrer a corrupção - Jânio Quadros), interinidade de outros ainda, e mais os governos de nada menos que 12 presidentes em situações as mais diversas possíveis. Pronto; voamos no tempo um período de 76 anos para chegarmos afinal ao governo do general Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967) que deu início ao regime militar brasileiro e durou de 1964 até 1985. Bem; se por aqui não tivemos Bastilhas, tivemos equivalências de guilhotinas e, muito mais requintadas. A tortura física. Que beleza hem? Pois; é nesse ambiente e de chofre, que abrimos o livro do senhor Willam.
Interessante notar que nenhum dos personagens possui nome. Grande metáfora da generalização da tortura que alcançava não somente os ditos comunistas. O mal contagioso precisava (e continua precisando) apenas de um motivo, verdadeiro ou não, para manifestar o ódio, o rancor estimulado e represado por gerações e gerações e por séculos. Pretos, pobres, mulheres, qualquer um, “qualquer qualquer”, sobre quem recaia a ira daqueles que momentaneamente estejam no poder. Eis a sistematização da violência. Em “mil e cinquenta e quatro”, que é o capítulo que abre o livro, lemos sobre o soldado que é empalado como castigo na frente de um batalhão inteiro (aí a velhíssima prática do manda quem pode, e a justiça feita com as próprias mãos e segundo as taras de quem a pratica). Segue-se outro capítulo no qual um casal com belos ideais de justiça social é preso e separados em prisões distintas e submetido a torturas indescritíveis (como não lembrar de tantos outros casais que tiveram o mesmo destino durante os 338 anos de escravidão oficializada no Brasil?) Em outro capítulo lemos sobre a mulher que de tanto ser submetida a torturas, e estupros, acaba enlouquecendo e passa a ter empatia e sentimento de amor e amizade por seu agressor (quantas índias que existiam no Brasil antes da chegada do colonizador não passaram por coisa semelhante?), ainda em outro capítulo, a tortura se institucionaliza nas casas mantidas pelo sistema, e espalhadas pelo país inteiro, a nos lembrar os antigos Pelourinhos nos quais se martirizavam os escravos? Há no texto do romance uma frase que é lapidar. “uma hora ou outra, quando menos se espera, os mortos sempre retornam...” Precisamos entender definitivamente que nunca bastou, não basta e não será suficiente carregar pelas ruas uma “faixa com os dizeres: abaixo a ditadura”. É preciso mais, muito mais!
E ainda, trinta anos depois que voltamos à prática da tal democracia que nunca existiu de fato no Brasil nos deparamos com a cena dantesca: “Mas o que esperar de um dirigente [presidente da república] que já se declarou fã de um dos maiores torturadores da ditadura e comemora o golpe de 1964 como se tivesse sido uma revolução e não o que realmente foi: um verdadeiro golpe que tirou um presidente legitimamente eleito do poder, apenas porque começou uma série de reformas em prol dos mais pobres da nação”. Aí o nosso estado democrático de direito, ou por outra, que vem a dar no mesmo, o moto-contínuo de nossa desgraça nos dias que correm.
“Memórias de um triste futuro” é livro para aqueles que têm olhos, que buscam um futuro melhor. Coisa que não se poderá jamais alcançar somente com a vista rancorosa voltada para o passado. Sim é preciso falar e dar a saber amplamente tais misérias para que não se repitam jamais. Entretanto, muito mais importante do que isto, é compreender em profundidade o porquê das coisas terem acontecido desta e não daquela forma, e como aquele passado vem se repetindo indefinidamente pelo viés do puro desprezo pela vida humana. À propósito, vale a pena ler com muita atenção o último capítulo do livro que é um primor de análise nesse sentido. Há ali uma série de pequenos textos que se interligam ao momento político-social que vive o brasil de nossos dias. E que todos nós conhecemos muito bem. Assim, temos ao invés de pequenas histórias individuais dos destroços humanos que a ditadura forjou em um passado relativamente recente, a generalização de uma ambiência sórdida que termina por afetar a todos, sem exceção, num agora de miséria, desemprego, tiroteios e balas perdidas, milícias de assassinos agindo impunemente, desgoverno, fome, prostituição, tráfico de drogas, política de safados, religião forjada em meros interesses, corrupção endêmica e toda essa barafunda sem qualquer perspectiva de dias melhores em que se transformou a sociedade brasileira. Uma bomba relógio de consequências imprevisíveis. Eis aí o pavio acesso de nosso “triste futuro” de 1964 a se manifestar no dia a dia. Todos os dias hoje!
Livro: “Memórias de um triste futuro”, Romance de William Soares dos Santos – Editora Patuá – São Paulo – SP, 2020, 172 p. - ISBN: 978-85-8297-903-7