4 de setembro de 2020

A poesia de Layla Gabriel de Oliveira

Perfeito

 

I

levar até a última

das consequências

completude

 

fazer através de

apesar de

até o fim

 

II

sangue que sabe o gosto da faca que nunca viu carne

pinga que corre a carne do sangue

que nunca viu faca

sangue que escorre no dorso da faca

que sabe o gosto da carne

 

III

que se escuta além

do que se diz

de quem se ama

 

chama que queima

no pavio do cigarro

que nunca viu chama

 

ao acaso, o perfeito

deixar por dizer

e negar até a morte

 

sangue que pinga

e escorre na carne

que nunca viu corte

*

Os filhos que nunca não tive
correm pelo quintal de casa

e eu escondo toda aresta ou quina de mesa

das mãos inquietas

e do coração

 

Os filhos que não são meus

(só amo coisas
que não são)

me acordam no meio da noite

e eu levanto, a fingir resposta

canto o que sei, a palma à mostra

com torniquete e oração

 

Todos os filhos, que não criei

nem pedi pra Deus,

na sala de espera, a se amontoar

nas farmácias, praças, banco e fila do bar

choram aos prantos, pedem cuidado

vejo-os à solta por todo o lado

dos lugares onde já estive

 

E eu não choro por nada

no mundo, nem por ninguém

como choro os filhos que nunca tive.

*

 

Infância


eu esqueci até mesmo
a oração curta para usar em emergências
alguma coisa alguma coisa eu não nasci
aqui eu não nasci aqui eu não

Kaveh Abkar

quantas vezes é possível mudar

sem que se queira?

que o corpo é capaz de esquecer

é o milagre

 

uma vez

eu tive um sonho

uma vez eu tive um coração

do tamanho de uma noz

uma vez

 

o meu corpo todo

caberia dentro

de um punho

(hoje ele parece

muito menor)

 

uma vez

eu tive o tamanho

do coração da minha mãe

depois cresci, e todo mundo

se esqueceu

 

*

 

O cacto

Os braços do cacto sobem alto para o céu
– cabem dentro da palma, e estão cheios de espinho.

Ele deixou que as suas folhas secassem e
morressem de sede, transformando isso em
um escudo – cada uma das formas de vida
encontra o seu jeito de permanecer.

Há um lugar, entre a crueldade do sol
e a insistência da natureza
em que o amor é possível.

De vez em quando, o cacto dá uma flor
– manifestação miraculosa da necessidade de ser –
e é bonita, mas nós não podemos
contar com ela.

 

*

 

A outra mulher

O coração, se pudesse pensar, pararia.
Fernando Pessoa.

Como num truque de mágica, a mulher posta
dentro da caixa

desaparece.

(é claro que, de fato, não se pode desaparecer
uma mulher, mas é possível ensiná-la
a fazer silêncio, e a esperar)

Saímos sem saber
como funciona o truque.
Nós pagamos o mágico
para não nos contar.

[...]

Eu o assisto
torcer a faca

Ele me assiste
assisti-lo
torcer a faca

Ninguém olha para a faca.

Como tocarei essas mãos
depois de ter visto
o que elas podem fazer?

[...]

No meio da sentença, o nome dela
não pronunciado.

No meio do trabalho, eu aprendo
que o conceito de esperar não amadurece no cérebro
antes dos quatro anos de idade.

Crianças podem obedecer, é verdade,
mas esperar, como uma decisão consciente
de sacrificar

é tortura que só uma mente formada pode escolher.

(Toda a minha vida
gasta entre correr e hesitar.

Toda a minha vida
gasta

com você)

[...]

Quando eu era pequena, minha professora
do jardim de infância propunha um jogo:
“silêncio”, para manter a sala em ordem

a única coisa que não se podia fazer era falar.

Quando eu era pequena, minha professora
do jardim de infância propunha um jogo:
eu estive ganhando há dezessete anos
ou mais.

[...]

Existe um motivo pelo qual
nós damos nomes aos animais de estimação
mas não aos que criamos para comer.

Quando a hora chega
é difícil não olhar.

Assistindo um documentário, descubro
que somos feitos das mesmas partículas
que sempre foram, desde o início.

Eu, o início.

Eu, um cemitério
de coisas que não se esquecem.
Meu coração, um cemitério
de amores que não perdoam.

Sentada sobre a grama, eu despedaço uma flor
mãos amargas e que têm fome

(Eu despedaço;
o que? uma flor?

Posso chamar uma coisa
tão desfigurada

pelo mesmo nome?)

[...]

No meio da sentença, a mulher
desaparece.

No meio do meio do
truque
de mágica;
No meio do meio da
vida, gasta

entre esperar e esquecer

no meio do meio da mulher, nunca mais
vista, uma vida, gasta
com você.

 

*

Layla Gabriel de Oliveira é atriz, tradutora e estudante de Letras na UFPR. Seu primeiro livro, "O que há por trás da porta", sai em 2020 pela Kotter Editorial. Foi finalista do Prêmio Off-Flip de Literatura 2020. Layla tem vinte anos, mora em Curitiba, e é educadora.