A poesia de Layla Gabriel de Oliveira
Perfeito
I
levar até a última
das consequências
completude
fazer através de
apesar de
até o fim
II
sangue que sabe o gosto da faca que nunca viu carne
pinga que corre a carne do sangue
que nunca viu faca
sangue que escorre no dorso da faca
que sabe o gosto da carne
III
que se escuta além
do que se diz
de quem se ama
chama que queima
no pavio do cigarro
que nunca viu chama
ao acaso, o perfeito
deixar por dizer
e negar até a morte
sangue que pinga
e escorre na carne
que nunca viu corte
*
Os filhos que nunca não tive
correm pelo quintal de casa
e eu escondo toda aresta ou quina de mesa
das mãos inquietas
e do coração
Os filhos que não são meus
(só amo coisas
que não são)
me acordam no meio da noite
e eu levanto, a fingir resposta
canto o que sei, a palma à mostra
com torniquete e oração
Todos os filhos, que não criei
nem pedi pra Deus,
na sala de espera, a se amontoar
nas farmácias, praças, banco e fila do bar
choram aos prantos, pedem cuidado
vejo-os à solta por todo o lado
dos lugares onde já estive
E eu não choro por nada
no mundo, nem por ninguém
como choro os filhos que nunca tive.
*
Infância
eu esqueci até mesmo
a oração curta para usar em emergências
alguma coisa alguma coisa eu não nasci
aqui eu não nasci aqui eu não
Kaveh Abkar
quantas vezes é possível mudar
sem que se queira?
que o corpo é capaz de esquecer
é o milagre
uma vez
eu tive um sonho
uma vez eu tive um coração
do tamanho de uma noz
uma vez
o meu corpo todo
caberia dentro
de um punho
(hoje ele parece
muito menor)
uma vez
eu tive o tamanho
do coração da minha mãe
depois cresci, e todo mundo
se esqueceu
*
O cacto
Os braços do cacto sobem alto para o céu
– cabem dentro da palma, e estão cheios de espinho.
Ele deixou que as suas folhas secassem e
morressem de sede, transformando isso em
um escudo – cada uma das formas de vida
encontra o seu jeito de permanecer.
Há um lugar, entre a crueldade do sol
e a insistência da natureza
em que o amor é possível.
De vez em quando, o cacto dá uma flor
– manifestação miraculosa da necessidade de ser –
e é bonita, mas nós não podemos
contar com ela.
*
A outra mulher
O coração, se pudesse pensar, pararia.
Fernando Pessoa.
Como num truque de mágica, a mulher posta
dentro da caixa
desaparece.
(é claro que, de fato, não se pode desaparecer
uma mulher, mas é possível ensiná-la
a fazer silêncio, e a esperar)
Saímos sem saber
como funciona o truque.
Nós pagamos o mágico
para não nos contar.
[...]
Eu o assisto
torcer a faca
Ele me assiste
assisti-lo
torcer a faca
Ninguém olha para a faca.
Como tocarei essas mãos
depois de ter visto
o que elas podem fazer?
[...]
No meio da sentença, o nome dela
não pronunciado.
No meio do trabalho, eu aprendo
que o conceito de esperar não amadurece no cérebro
antes dos quatro anos de idade.
Crianças podem obedecer, é verdade,
mas esperar, como uma decisão consciente
de sacrificar
é tortura que só uma mente formada pode escolher.
(Toda a minha vida
gasta entre correr e hesitar.
Toda a minha vida
gasta
com você)
[...]
Quando eu era pequena, minha professora
do jardim de infância propunha um jogo:
“silêncio”, para manter a sala em ordem
a única coisa que não se podia fazer era falar.
Quando eu era pequena, minha professora
do jardim de infância propunha um jogo:
eu estive ganhando há dezessete anos
ou mais.
[...]
Existe um motivo pelo qual
nós damos nomes aos animais de estimação
mas não aos que criamos para comer.
Quando a hora chega
é difícil não olhar.
Assistindo um documentário, descubro
que somos feitos das mesmas partículas
que sempre foram, desde o início.
Eu, o início.
Eu, um cemitério
de coisas que não se esquecem.
Meu coração, um cemitério
de amores que não perdoam.
Sentada sobre a grama, eu despedaço uma flor
mãos amargas e que têm fome
(Eu despedaço;
o que? uma flor?
Posso chamar uma coisa
tão desfigurada
pelo mesmo nome?)
[...]
No meio da sentença, a mulher
desaparece.
No meio do meio do
truque
de mágica;
No meio do meio da
vida, gasta
entre esperar e esquecer
no meio do meio da mulher, nunca mais
vista, uma vida, gasta
com você.
*
Layla Gabriel de Oliveira é atriz, tradutora e estudante de Letras na UFPR. Seu primeiro livro, "O que há por trás da porta", sai em 2020 pela Kotter Editorial. Foi finalista do Prêmio Off-Flip de Literatura 2020. Layla tem vinte anos, mora em Curitiba, e é educadora.