31 de agosto de 2020

A poesia de Mika Andrade

descompasso

eu escrevo poemas
como quem cavalga
a galopes,
sacolejando os ossos
os sentidos e
as palavras
em pleno descompasso.

*

um corpo reza diante do
um corpo chora diante do
um corpo goza diante do
um corpo estremece
diante da magnitude
do teu.

*

tenho predileção por poemas
que atravessam a paisagem

o quintal na casa da minha avó
era um poema todo escrito de melancolia
as paredes cinzas
quase coberta com lodo

seu quarto era algo tão solitário
quanto a sua ausência
a cama sempre arrumada
tudo no lugar
como se ninguém dormisse ali há anos
porém, não havia poeira
mas havia sombras

o corredor me acompanhava até a cozinha
junto com um sentimento
tão preenchido de amor e quentura
que às vezes eu achava ser mormaço

seu rosário atravessa o tempo
que atravessa meu corpo
que atravessa a tristeza
que atravessa a certeza
de que esse poema me atravessa
mas permanece

*

abrir os olhos
e preparar-se
para colidir com
tempos traiçoeiros

uma pausa breve
diante do assombro
de existir

depois disso
alcançar o êxtase
de se tornar
a mulher que você
sempre quis ser

*

miragem

nunca me senti radiante e reluzente
como o sol perante o deserto
porém já me senti árida e seca
um vazio enorme me ocupando
uma poeira constante cegando meus olhos
minha boca rachada por falta de ternura
e saliva – miragem, desejo e delírio

*

água

eu continuo estática à beira-mar
aguardando o seu retorno

as ondas não quebram na praia -
quebram em mim

não há mais espumas
é tudo um lago plácido
você é um barco suspenso na água

um vislumbre...

o mar em nossos olhos

*

não foi possível deitar sem antes desejar sua pele,
desejar uma carícia,
lamber seu corpo como quem rega delicadamente
a pétala de uma rosa já murcha

tanto cuidado para não te acordar
tanto cuidado para te fazer ficar

sussurro meu poema preferido
i love a black man em seu ouvido
como quem faz uma prece

encosto a cabeça em seu peito
escuto o ritmo do seu coração
adormeço com o som da sua existência

 

***

 

mika andrade nasceu em quixeramobim, em 1990, mas reside em fortaleza desde os quatro anos de idade. organizou a antologia erótica de poetas cearenses O Olho de Lilith (Selo Ferina, 2019). tem seus textos publicados em sites, zines e antologias. publica no seu blog [mikaandrade.wordpress.com]. instagram: @mikaandrade__