Esperança
Era sempre a mesma coisa. Ela chegava da rua, mandava os quatro formarem a fila e nos passava em revista. Primeiro cabelos e unhas, depois orelhas e cotovelos, aí conferia o estado das roupas e farejava o pescoço. Um sinal de catinga ou sujeira e a palmatória descia no couro da mão. Todos limpos e cheirosos, ai de quem se melasse novamente até a hora de ir pra cama.
Depois da revista física, vinha a intelectual. Um a um, éramos chamados pra mostrar os cadernos e passar a lição. E havia os acréscimos domésticos. Tabuada na ponta da língua. A cada erro, um puxão de orelha. E ditado de trinta palavras, três vezes por semana. O rol ia ficando mais difícil com o tempo, mas a pena era amortecida: uma palmada na bunda a cada três erros de ortografia.
Por fim, a vigilância de costumes. Havia norma pra cada pensamento ou palavra, ato ou omissão. E havia penas: puxão de orelha, caroço de milho, palmatória, solitária no quarto dos fundos. Uma vez, eu me rebelei e pedi que as regras fossem escritas e os castigos expressamente previstos para cada transgressão. Ela me puxou pela orelha até o caroço de milho, sentou a peia e mandou dormir na solitária.
— Tome aí o seu código!
Tudo aquilo era doloroso, mas suportável. Afinal de contas, estava no contrato das famílias. O que eu não perdoava era a injustiça. Exemplo. Quem não quisesse estudar piano, tinha que ocupar o tempo completo de uma aula transcrevendo a partitura. Marcos, Paulo e eu obedecíamos, mas Tadeu sempre achava de adoecer faltando meia hora para o professor chamar da calçada. E ficava por isso mesmo.
Um dia, eu protestei. Quando ele ficar bom, tem que transcrever também! Ela me olhou como se fosse Lee Oswald mirando a cabeça de Kennedy e disparou um, dois, três tabefes na nuca. Marcos riu de mim e levou um bolinho leve na bunda. Quem mais? Paulo baixou a cabeça. E lá do quarto ouvimos os gemidos do outro. Fosse ao menos ele quem perdesse os miolos naquele mês.
Volta e meia, Umbelina vinha passar uns dias. Cabeça branca, vestido de chita e aquele tom de ternura na voz, meio gasta, que enganava o besta. Fosse a outra avó, ninguém daria pela presença. Mas aquela velha era carne de pescoço e disputava território com a nora. Meu pai, entre a cruz e a espada, resolvia tudo trabalhando até mais tarde e ficando cansado demais pra se meter na bronca do dia.
Certa ocasião, os dias se estenderam em semanas, meses. Quase um ano e a velha não ia embora. Lá pelo nono mês, não bastassem os pitacos mordazes nos assuntos de copa e cozinha, inventou de dizer que as mulheres não se davam mais ao respeito. Trabalhar na rua, onde já se viu? É por isso que Durval anda nervoso e a prole malcriada. Ela engoliu aquilo em silêncio, mas se preparou pra guerra.
Aí, veio o estopim.
Um belo dia, ela chegou de fininho e surpreendeu a velha querendo cortar nossas unhas.
— Dona Umbelina!
As duas mulheres se engalfinharam. Primeiro verbalmente, depois nas vias de fato. Foi preciso ligar pro meu pai. Quando ele chegou, não houve cansaço nem serão que desse jeito. Ou ela, ou eu! E ele preferiu a esposa. Mandou chamar o irmão em Nazarezinho. Não demorou dois ou três dias, tio Sinval veio em missão de paz e levou a mãe pra casa. Antes fosse pro Texas.
Uma coisa se diga. Ela podia ser bruta como fosse e cometer essa ou aquela injustiça, mas nos deixava cumprir as obrigações por conta própria. E aquilo de a velha me puxar pelo braço e meter a tesourinha nos meus dedos foi uma violação inaceitável do contrato, um ato de agressão gratuita à livre determinação dos corpos. Pior ainda. Não sei o que deu na cabeça dela que, na semana seguinte, chamou os quatro.
— Estendam as mãos.
E começou a cortar nossas unhas. Marcos deixou, Paulo baixou a cabeça, Tadeu escapou pela tangente. Eu protestei, por isso mesmo a tesourinha veio como facão na mata virgem e não se contentou em tirar o excesso de unha, arrancou uma lasca de carne de cada dedo. No último, desceu sangue. Chupei, engoli o ferro a seco e jurei que não ficaria assim.
Na virada do ano, ela decidiu que não trabalharia mais na rua até os filhos ficarem grandes. Os meninos fizeram a festa, eu fugi. Passei três noites escondido no quarto de um vizinho, até o pai dele chegar da fazenda e me arrastar de volta pra casa. Não apanhei, mas tive que trabalhar dobrado. Duas horas de piano até a Páscoa. E foi só o começo dos novos tormentos.
A tabuada ficou mais exigente. Treze vezes dezessete, e não conte nos dedos. O ditado de palavras foi reforçado. Açucena, sarça, suçuarana. E escreva uma frase inteligente pra cada qual. As regras tornaram-se mais rígidas e as obrigações em casa mais extenuantes. Se aparecia uma visita, os meninos só tinham que não vir pra sala; eu tinha que ficar no quarto de porta fechada.
Uma única vez, apelei ao meu pai. Com a patroa em casa, a empregada foi dispensada e eu, promovido a ajudante de cozinha. Não adiantou argumentar com o chefe da casa que o terceiro filho macho estava fazendo serviço de mulherzinha. Educação é com sua mãe. O que ela ordena, está ordenado. E ficou por isso mesmo. Ou por coisa pior. Vai ajudar na limpeza dos banheiros, pra deixar de ser reclamão.
Percebi que era melhor ficar calado e contar com o tempo. Em no máximo dez anos, eu teria meu próprio dinheiro e viveria longe daquele suplício. Ia lentamente assentando isso no juízo. Foi quando veio o inverno, as festas de junho chegaram e Tadeu caiu doente. Um resfriado a princípio, uma gripezinha mais séria depois. Tomara que esse sonso agora morra. Apanhei sem dó nem piedade.
O médico só foi chamado no sétimo dia. Era broncopneumonia e a demora no tratamento tinha agravado tudo. Meu pai caiu logo no desespero. Ela era fria, mas pude sentir a aflição brotar discretamente em seu rosto, como o musgo amaciando a pedra. Mais alguns dias e veio o padre, rezou sobre o corpo em transe do doente e me fez acreditar que aquilo tudo era verdade. Veio o remorso e, com ele, a conciliação.
Ela não desgrudava mais da cabeceira, desfazendo-se em cuidados para aliviar o sofrimento do caçula. Passei a ajudar com os panos e as bacias de água. Ia à farmácia, abria a porta pro médico, revezava com ela no plantão da noite. Foi preciso trocar a roupa de cama e ela levantou Tadeu pelos braços enquanto eu fazia a muda de lençóis e fronhas. Foi preciso banhá-lo e eu umedeci as toalhas com água e sabão.
Os vizinhos perguntavam do doente com aquelas caras de piedade que mal disfarçavam o agouro da morte. Eu respondia que meu irmão se recuperava e, mais dia menos dia, voltaria a brincar na rua. Mas, quando entrava em casa e o via naquele estado, sentia o peito acochar e desatava a chorar mais que o meu pai. Um dia, ela me viu aos prantos e quase passou a mão na minha cabeça.
Descobri que ela era capaz de ternura. Tive vontade de amá-la. Mas não sabia como. Talvez aprendesse com o tempo e aquele havia sido apenas o primeiro gesto de aproximação. No outro dia, a febre cedeu. O médico veio e confirmou a melhora. Mais uma semana e o menino volta à vida. Meu pai quis dar uma festa, Marcos e Paulo retomaram o futebol. A aflição desapareceu do rosto dela.
Quando Tadeu levantou-se, fui recolher os lençóis da cama. Ela ia tomando a frente pra fazer todo o serviço quando notou os meus dedos. E essas unhas, menino, por que não foram cortadas? Mandou trazer a tesoura, sentar a bunda no tamborete e estirar as mãos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez vezes cortada em minha carne a chance de paz.
Meu pai anunciou uma bela noite que nós faríamos uma viagem dali a algumas semanas. Ano difícil, doença, crise, mas tudo agora voltou à normalidade e a família merece festejar. Iríamos de Rural até o Rio de Janeiro, parando nas principais cidades. A alegria foi geral, sobretudo dela, que sempre falava em conhecer a antiga capital. Passou inclusive a cantarolar umas canções de Tom Jobim.
Os dias andavam tão alegres na casa que até uma esperança entrou pela janela da sala e pousou no aparador. Um, dois, três dias e o inseto não arredava as asas. Ela viu nisso sinal de bonança sem fim. Afeiçoou-se de tal forma ao bicho que o atraía para o dedo indicador ao passar por ele, acariciava as patinhas verdes e atirava um beijo em direção à cabecinha entroncada.
Uma tarde, ela interrompeu a costura e foi ao mercado. Na volta, quero os quatro de banho tomado pra cortar as unhas. Os meninos já tinham terminado as tarefas e brincavam na rua. Eu ainda fazia a lição de casa e vi a tesourona de retalhar tecido largada sobre a mesa. De repente, sorri. Mal ela saiu, empunhei a tesoura como um cavaleiro se armando para a desforra.
A esperança estava no centro de sala, exalando bonança sem fim. Quando ela voltar, o que há de ser cortado já estará mais que bem cortado. Aproximei-me de fininho e uma, duas, três, quatro, cinco, seis tesouradas depois, o inseto arriou sobre o móvel, tremeu sem as patinhas e ainda bateu as asas tentando escapar do destino. Tsique! Dei-lhe o corte de misericórdia. E ficamos conversados.
Thiago Lia Fook (Campina Grande/PB) é autor de três livros de poesia e uma coletânea de contos (Antigamente era melhor), publicada pela editora Moinhos em 2019. Foi membro do Núcleo Literário Caixa Baixa. Suas crônicas podem ser lidas em http://facecronicas.blogspot.com/